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Caça às bruxas, inquisição e o apagamento das Majés na Amazônia

Arapecangas Tupinambá do baixo Tapajós (Foto: Milena Tupinambá)

Nos séculos XVI e XVII da Era Moderna, o mundo testemunhou, horrorizado, um dos maiores feminicídios da história: a chamada “caça às bruxas”, associada ao movimento político-religioso da Santa Inquisição. Essa perseguição, inspirada no manual de tortura Malleus Maleficarum, visava exterminar mulheres consideradas uma ameaça às estruturas patriarcais e religiosas. Embora seja comum acreditar que esse episódio ocorreu na Idade Média, a chamada “era das trevas”, ele, na verdade, se deu durante a Era Moderna, no contexto do Renascimento e do Iluminismo – períodos associados ao “esclarecimento” e à razão, nos quais se buscava iluminar a “escuridão” das antigas crenças populares.

Apesar de sua proposta de superar as ideologias medievais, o Renascimento e o Iluminismo também consolidaram uma dominação racionalista e ocidental que se sobrepunha aos saberes tradicionais. Embasados em cosmovisões originárias, viam o mundo como um espaço onde a natureza, os espíritos e as divindades estavam interligados. A Inquisição não apenas reprimiu essas cosmovisões na Europa, mas expandiu sua perseguição para as Américas e África, onde caçaram mulheres e homens, especialmente aqueles que mantinham saberes ancestrais ligados à cura e à espiritualidade.

Na Amazônia, a Inquisição perseguiu e executou figuras como pajés, parteiras e majés. As parteiras, por exemplo, foram acusadas de praticar infanticídio. Com a invasão europeia, doenças trazidas pelos colonizadores afetaram grande parte das populações locais, incluindo mulheres grávidas. Em muitas culturas indígenas, o processo de morte e os ritos funerários tinham simbolismos muito diferentes dos europeus. Em casos de morte materna, o corpo da mãe e do bebê eram frequentemente enterrados juntos ou incinerados, conforme os costumes tradicionais, pois não havia separação entre eles na passagem para o mundo espiritual. Esse ritual foi distorcido pelos inquisidores, que acusaram as parteiras de práticas macabras, como comer bebês, pois o corpo da criança não era encontrado em separado.

MAJÉS NA AMAZÔNIA

A perseguição aos pajés e majés foi ainda mais brutal. Considerados “satanistas” ou “adoradores de demônios”, esses líderes espirituais e curadores eram responsáveis por mediar o conhecimento de cura, medicina e espiritualidade das comunidades indígenas. Com a repressão, os colonizadores e missionários se empenharam em substituir a figura da majé, que significa “Mãe da Cura”, pela figura masculina do pajé, “Pai da Cura”. Enquanto pajés e majés tinham o papel de falar com os espíritos e atuar como guias espirituais e curandeiros, o termo majé acabou sendo apagado pela imposição de uma figura masculina, o que facilitava a dominação e o controle das lideranças indígenas pelos colonizadores.

Esse apagamento cultural foi longo e profundo, a ponto de o termo majé desaparecer das memórias de várias comunidades. As mulheres curadoras passaram a adotar o título de pajé, mesmo em um contexto de resistência e retomada. Curiosamente, muitas das práticas de cura entre os povos originários ainda são conduzidas majoritariamente por mulheres, reforçando o papel feminino na perpetuação dos saberes tradicionais.

Com o fortalecimento dos movimentos de retomada indígena, o termo majé tem ressurgido em comunidades com longas tradições de cura e onde as mulheres são protagonistas desses saberes. Um exemplo recente é o das Arapecangas da Aldeia Papagaio, do povo Tupinambá, no Baixo Tapajós, no Pará. Elas vêm resgatando o legado de suas ancestrais, honrando a linhagem das mulheres curandeiras e a importância das majés na preservação das práticas de cura e espiritualidade.

Esse movimento desafia séculos de imposição colonial e patriarcal, evidenciando a resiliência das culturas indígenas na preservação e revalorização de suas tradições.

Matéria escrita pela Historiadora e Antropóloga Indígena @ginecologianaturalamazonica/ Colunista convidada do @btamazonia .

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