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Ingo Müller | Nunca foram as pedaladas: o testemunho tardio de Barroso

Tem coisas que acontecem no Brasil que seriam inadmissíveis em qualquer país civilizado, mas aqui a gente chama de “apenas mais uma quinta-feira”. A bola da vez foi a declaração do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, que abertamente admitiu que o verdadeiro motivo para o afastamento da presidente Dilma Rousseff em 2016 não foram as pedaladas fiscais – essa, na verdade, teria sido a desculpa para remover a petista do governo, enquanto o real interesse por trás processo de impeachment seria sua impopularidade política.

Zero surpresas, já que a declaração do ministro apenas ratifica, cinco anos depois do fato, o que todo mundo já sabia: a despeito de qualquer manobra fiscal feita pelo governo federal na época do impeachment, tirar Dilma do poder fazia parte de um “grande acordo nacional, com o supremo, com tudo”, como bem explicou o senador do então PMDB Romero Jucá em áudios vazados na época.

Romero Jucá, presidente do MDB RR. Na época do impeachment, Jucá era senador pelo partido. Foto:Reprodução

A argumentação do ministro Barroso é um artigo da primeira edição da revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), que será lançada no próximo dia 10, mas cujo conteúdo foi divulgado pela jornalista Mônica Bergamo da Folha de São Paulo em uma postagem feita às 23h do último dia 2. Bergamo destaca o seguinte trecho da fala do Ministro para a publicação, ainda inédita:

“A justificativa formal [para o impeachment] foram as denominadas ‘pedaladas fiscais’ — violação de normas orçamentárias—, embora o motivo real tenha sido a perda de sustentação política”

Ministro do STF, Luís Roberto Barroso e a ex-presidenta, Dilma Rousseff (PT). Montagem: Belém Trânsito

Eu não sei o que leva Barroso a falar assim, abertamente e sem pudor sobre o tema, mas não é a primeira vez que ele toca no assunto. Talvez seja remorso por sua casa, o STF, ter votado pela mudança do rito do impeachment que permitiu o seguimento do processo contra a ex-presidente (Barroso votou contra, queria manter o rito usado em 1992 contra Fernando Collor); mas é mais provável que o ministro avalie que, a essa altura do campeonato, não faz qualquer diferença escancarar que o PT sofreu um golpe institucional.

O irônico – para não dizer trágico – é que as mesmas instituições que facilitaram o golpe contra a Dilma tentam, hoje, impedir o país de se esfacelar nas mãos de um executivo descompromissado com a realidade e as necessidades reais da população, mas que a despeito de sua impopularidade no mundo real, fora do cercadinho e do zapzap, não foi chutado do planalto porque se curva ao lobby expressivo de bancadas ligadas ao BBB – bala, boi e bíblia.

Foi essa trindade nada santa que permitiu a manutenção do atual presidente no poder, resistindo a 139 pedidos de impeachment relacionados à saúde, improbidades administrativas, quebras de decoros e interferências na polícia. Tivessem interesse em preservar o país, um grande acordo nacional contra Bolsonaro não precisaria arrumar uma desculpa para tirar o presidente do poder – bastava abrir os olhos e fazer andar a pilha de processos contra ele.

Charge de Nando Motta retrata Rodrigo Maia sentado sobre a pilha de pedidos de impeachment contra Bolsonaro

Só que o impeachment de Jair foi atravancado pela liberação generosa do dinheiro da união. Através dessa sangria desatada a fidelidade de políticos foi comprada graças às chamadas “emendas de relator”, um orçamento secreto do governo que só em 2021 foi estimado em R$ 16 bilhões. A título de lembrança, a compra de apoio político pelo PT durante o escândalo do mensalão, tido como maior caso de corrupção nacional em 2005, envolveu cifras bem mais modestas: “só” 56 milhões, segundo o operador do esquema, Marcos Valério.

Não tenho simpatia pessoal pela ex-presidente Dilma, e critiquei várias medidas de seu governo – notadamente construção de Belo Monte-, mas é inegável que tudo o que fazia o povo gritar na sua gestão, incluindo a alta do dólar e o preço dos combustíveis, hoje está muito pior. Apesar disso, silêncio nas ruas. Quem instigava a população naquela época deve estar muito satisfeito com o governo atual, por razões além da nossa compreensão.

Talvez por isso o ministro Barroso tenha decidido abordar novamente o assunto do impeachment. Se não estimular uma reação do povo zumbificado pelas tragédias do dia-a-dia, ao menos o desabafo poderá fazê-lo dormir melhor. Coitado do ministro… já pensou o sofrimento de guardar segredo por tanto tempo?