Chegou abril, mês do maior encontro dos povos indígenas do Brasil, o Acampamento Terra Livre (ATL) em Brasília, com o tema: Retomando o Brasil, Demarcar Territórios e Aldear a Política. E como é mês de luta, trago para vocês esse tema, que é uma conquista histórica da luta indígena no País.
Sempre fomos povos em busca de conhecimentos, e através da nossa medicina ancestral utilizando elementos da natureza, criamos nossos remédios, a nossa gastronomia, a nossa arquitetura, que servem até hoje de base medicinal, alimentar e arquitetônica para toda uma nação.
Mas chegou o “branco”, o não indígena, roubou o nosso conhecimento e aperfeiçoou, mas não faz referência a nós que criamos. Nos invisibilizam, além disso, criminalizam a nossa cultura, a nossa civilização e ainda condenam o nosso modo de vida ancestral com uso de nossa medicina, gastronomia e arquitetura. Incoerente, né? Mas hoje existe a universidade centro de estudo, pesquisa, qualificação profissional e intelectual da humanidade, e nós como bons criadores que somos, chegamos até esse espaço, depois de muitas lutas dos nossos antepassados que através da resistência indígena garantiram o nosso acesso, onde lutamos para permanecer.
TU SABES O QUE É POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA?
Apresentando de forma sintética e objetiva, políticas afirmativas são medidas amparadas pela Lei 12.711, que garante vagas universitárias para pretos, pardos e indígenas, como forma de reparar historicamente a privação de direitos que esses grupos sofreram.
Vou falar especificamente da reserva de vagas na universidade destinada para indígenas. Pois é por meio de Políticas de ações afirmativas, conquistadas pelo som latente da voz dos povos originários, que adentramos no universo das decisões e atuamos em espaços jamais destinados a nós. As características das ações afirmativas muito nos dizem do que precisamos eliminar, pois ela foi criada justamente com o intuito de desaparecer com as desigualdades e segregações, com a marginalização de pessoas e lugares na sociedade.
Mas preciso destacar, que o ingresso dos indígenas nos espaços de ensino superior, a discriminação e racismo, o desrespeito a cultura e costumes, ingressam também. E o que não ingressa junto com o indígena na universidade é a garantia da sua permanência nela. A escassez das bolsas de auxílio permanência do governo federal e da própria universidade, tem provocado evasão de estudantes indígenas, principalmente na Amazônia. E a permanência até a conclusão do curso, pois do que se vale a criação de políticas que não atendam integralmente às necessidades de quem é contemplado com as vagas? É fácil elaborar relatórios de evasão indígena de dentro das universidades, quando não se conhece a raiz do problema e a realidade de cada indivíduo.
Para quem está dentro do ambiente acadêmico, conhece e sabe o quão importante é continuar ali, mas também sente as dores de se firmar em um espaço majoritariamente ocupado por pessoas não indígenas.
No Brasil, de acordo com o último Censo 2010, são mais de 800 mil indígenas, sem a inclusão dos autodeclarados e territórios com processo de demarcação. Porém, somente 0,68% estão inseridos nas universidades, o percentual é apresentado pelo Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), no ano de 2018, que é a versão mais recente do levantamento.
POLÍTICAS AFIRMATIVAS PARA OS POVOS INDÍGENAS SOB O OLHAR DOS PROTAGONISTAS
Edimar Fernandes Kaingang, é Doutor em Antropologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), da Universidade Federal do Pará (UFPA), em sua tese de doutorado com o tema: Políticas Afirmativas para os Povos Indígenas sob o olhar dos protagonistas, destrinchando a problemática desse importante meio de acesso, justamente ouvindo quem realmente interessa, os originários da terra. Para ele, a demanda crescente por espaços no ensino superior traz consigo problemas relativos à formação deste novo público, dentre eles, o ingresso, a permanência e o sucesso de indígenas na universidade.
Para Kaingang, o defit de instituição superior que trabalhem a aplicação de ações afirmativas, se encontra no racismo institucional, e ressalta a importância de reflexão a acerca das políticas institucionalizadas que reproduzem o racismo, também requer que se avaliem as atitudes das pessoas que representam as instituições, pois são elas as responsáveis pelas políticas criadas, compondo estruturas sociais, tecendo a teia de obstáculos e impedimentos que se configuram em dificuldades impostas para o alcance da justiça social. O debate aberto por ele, nos apresenta uma ampla falta de atualização dessas políticas, mesmo que ela permita a entrada, é de suma importância que exista permanência e abertura de portas para um maior quantitativo de vagas, que no Pará se limita apenas a uma universidade, a UFPA, que tem sido incentivadora para que outras universidades despertem o interesse em aderir a ações afirmativas. E isso é fala de quem viveu na pele e deu voz a quem assim como ele, enfrentou as doçuras e os amargos de ingressar em uma universidade.
Em universidades que não fazem questão de problematizar a presença indígena no seu interior, a probabilidade da criação de empecilhos para implantação de políticas específicas e usurpação de conquistas alcançadas pelos povos indígenas é muito alta, pois as iniciativas, tanto dos indígenas discentes, quanto dos apoiadores, tendem a ser esmagadas pelo rolo
compressor da homogeneização e universalização, que são o véu do racismo institucional, este não permite a promoção da justiça social e a inclusão com dignidade de povos e grupos vulnerabilizados. No que se refere a UFPA, até o presente momento nenhum balanço sobre os avanços e retrocessos nas políticas de ação afirmativa e políticas de permanência para povos indígenas foi realizado, etapas importantes para a avaliação das ações relacionadas ao acesso e Assistência Estudantil. O indígena, que hoje chamamos orgulhosamente de Doutor, não ganhou o título, conquistou, para sim, chegar aonde para muitos é um lugar distante. Quando se fala de ações afirmativas, também é possível falar do processo de descolonização, na busca por emancipação em espaços construídos com base em pensamentos limitados a grupos específicos de pessoas.
ASSOCIAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS ESTUDANTES NA UFPA (APYEUFPA)
Diante dos avanços que conquistamos ao longo dos anos, hoje podemos contar com a auto-organização dos estudantes indígenas dentro da universidade na UFPA, existe a Associação dos Povos Indígenas Estudantes na UFPA (Apyeufpa), que atua incentivando e acompanhando a entrada e permanência dos estudantes indígenas na universidade.
Gilberto Xipaya, é membro conselheiro da diretoria, da ApyeUfpa, e faz a seguinte reflexão, a chegada do indígena na universidade é apenas o início de uma luta que percorre durante todo o período do curso, e isso, quando não há desistência no caminho, pois a luta para permanecer é uma constante, que perpassa pelo racismo que os estudantes sofrem dentro da universidade. E buscam encontrar soluções para eliminar a escassez de auxílio e encontrar formas de garantir o sustento no ambiente de ensino, tendo em vista que a maioria vem de outras regiões do País, o que requer colaboração para custear a permanência até a conclusão do curso.
A principal preocupação da APYEUFPA segundo Gilberto, é conseguir manter os estudantes indígenas dentro da universidade. Ele destaca que alguns processos de liberação de bolsas aos estudantes, são um pouco demorados, e na tentativa que o aluno indígena não desista, foi criado um auxílio emergencial, até que o auxílio permanência seja liberado. Existe também o auxílio oferecido pelo Ministério da Educação (Mec), mas a aprovação para receber o benefício passa por avaliações criteriosas e que não atende ao perfil de todos os estudantes dessa categoria. Além de ser um quantitativo pequeno para atender a todo território brasileiro, pois houve cortes nesses auxílios pelo atual Governo Federal.
PROCESSO SELETIVO ESPECIAL PARA INDIGENAS E QUILOMBOLAS
O Processo Seletivo Especial (PSE), para Indígenas e Quilombolas existe na Ufpa há 11 anos, no início as dificuldades eram ainda maiores do que atualmente, mas com representantes indígenas dentro desse espaço, o avanço vem sendo conquistado aos poucos, pois não existia nenhuma ajuda financeira para permanecer dentro das universidades. E a partir disso que surgiu a associação para fazer luta e propor formas de transformar a universidade em um espaço contínuo para os indígenas. E com muita luta e reivindicação, hoje o diálogo com a instituição tem se ampliado afirma Gilberto Xipaya.
No PSE existem duas fases, a primeira é composta por uma redação em forma de prova, e na segunda, é realizada uma entrevista com cada candidato aprovado na redação. A entrevista é feita com professores com vínculo na UFPA, vale ressaltar que nos dois últimos processos, a banca entrevistadora contou com a participação de alunos indígenas de pós-graduação. O que representa um avanço na formação de profissionais Indígenas.
O Processo Seletivo Especial (PSE), para Indígenas e Quilombolas existe na Ufpa há 11 anos, no início as dificuldades eram ainda maiores do que atualmente, mas com representantes indígenas dentro desse espaço, o avanço vem sendo conquistado aos poucos, pois não existia nenhuma ajuda financeira para permanecer dentro das universidades. E a partir disso que surgiu a associação para fazer luta e propor formas de transformar a universidade em um espaço contínuo para os indígenas. E com muita luta e reivindicação, hoje o diálogo com a instituição tem se ampliado afirma Gilberto Xipaya.
DOUTOR ALMIRES GUARANI, O PRIMEIRO PROFESSOR INDÍGENA DA UFPA
Almires Guarani Terena é doutor em Antropologia, mestre em direitos humanos e bacharel em direito. Passou no concurso público para professor do curso de direito da Ufpa. É o primeiro indígena professor da maior universidade da Amazonia, que orgulho para nós. É um filho legitimo das políticas de ação afirmativas para indígenas no Brasil.
O ano era 1997, quando Almires Martins Machado, pertencente a etnia Guarani-Terena, foi convidado pelo coordenador da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), há época, para fazer parte da produção de um projeto na área da educação, que falava justamente do ingresso de indígenas na universidade. O projeto em parceria com uma colega, foi recusado por universidades federais e estaduais, mas desistir não estava entre os planos de Almires, até que uma faculdade privada aceitou a proposta e no ano seguinte se inicia a oferta de 100 vagas para os povos indígenas. Era o começo da garantia dos nossos direitos na educação. Em 2006, não por acaso, Almires estava em Brasília participando de um evento, quando encontrou mais uma oportunidade de levar a nossa gente para dentro dos ambientes acadêmicos, dessa vez, almejando a pós-graduação, focando em um dos cursos mais concorridos dentro da universidade, o direito. O projeto que previa a inserção dos indígenas na universidade, que o indígena fazia parte, foi aprovado por unanimidade dentro do colegiado da instituição, que no mesmo ano ofertou duas vagas destinadas aos candidatos indígenas, que o Almires, foi um dos ingressantes. É possível enxergar aqui exatamente como funciona o
processo, somos nós fazendo por nós, indígena criando política que atenda indígena e sendo beneficiado por ela, é quem entende das necessidades elaborando propostas que conversam com a realidade. E o nome disso é revolução!
Almires não foi blindado ao racismo e preconceito, mas faz questão de destacar os bons, aqueles que os trataram com dignidade, com afeto, empatia e humanidade. Aqueles que incentivaram e que faziam com que a estadia ali fosse permanente e benéfica.
Indianizando espaços acadêmicos, é parte do desejo de Almires, que chama a parentada para enfrentar o que segundo ele, não é um bicho de sete cabeças, mas se for, faz um convite para reunir força, resistência, resiliência e ir para as universidades ocupar o espaço que também é nosso. Para ele, essa é uma forma de dizer que no mundo há muitas outras possibilidades de conhecimento, de modo de vida, de entender a vida, o direito, e fazer uma outra medicina que não a ocidental, mostrando que também podemos fazer história nesse país. Somos o início da história, mas também somos o durante. Estamos vivos e em movimento, na andança que nos trilha até o caminho do protagonismo.
A dor do estudante indígena começa na partida de sua aldeia, quando os seus ficam, mas ele precisa seguir, sem saber o que encontrará e como sobreviverá, a cultura é afetada, o sentimento é endurecido, temos que engrossar a casca e enfrentar o mundo sozinhos, nossa comida já não tem mais o mesmo sabor, a dor já não se cura com ervas naturais, os cantares são tão estranhos, e nossas pinturas são julgadas por olhares de gente que se resume a uma bolha.
Para Almires, as portas estão abertas, mas poderão ser mais amplas, com a construção de casas para estudantes na cidade, um acompanhamento aos ingressantes originários em todos os níveis da universidade. Não que não se tenha entendimento desse universo, mas sim, porque precisam ser apresentados e colocados nesse novo mundo, e isso, se estende às comunidades quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e povos tradicionais, viventes de uma realidade diferente do que encontra nesses espaços. A execução dessas medidas, colabora para a permanência no ensino superior e nos daria a possibilidade de dizermos que avançamos.
Reconhecemos a importância de universidades como a Ufpa, que atendeu a reivindicação da luta indígena, mas no Pará ainda precisamos avançar muito, outras universidades públicas precisam rever sua postura de negação a esse direito constitucional e garantir as ações afirmativas, para além das cotas. A resistência indígena segue a luta, no seu tempo e lugar e não daremos nenhum passo atrás.