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Nice Tupinambá | O horror dos crimes cometidos por garimpeiros nas aldeias Yanomamis

Invadida por mais de 20 mil garimpeiros, Terra Indígena Yanomami vira cenário de etnocídio

Há quase meio século o povo Yanomami sofre uma sistemática política de extermínio, desde que o governo militar resolveu rasgar a floresta amazônica de leste a oeste do Amazonas ao Amapá. A BR-210, conhecida como Perimetral Norte, foi mais um projeto faraônico que naufragou deixando um rastro de destruição e desperdício de recursos públicos.

O início da construção, em 1973, marcou o choque violento com milhares de indígenas desta sociedade de caçadores-coletores e agricultores de coivara, que desde tempos imemoriais habitam essa extensa faixa do extremo norte do Brasil e do sul da Venezuela. Os primeiros contatos esporádicos com os brancos datam do início do século XX.

Um relatório da Funai, de 1975, admitiu que a malfadada construção da Perimetral Norte, que um ano depois teria suas obras interrompidas para nunca mais recomeçar, foi responsável pela disseminação de muitas doenças entre os indígenas, principalmente gripe e sarampo, resultando na morte de 11% da população Yanomami. É possível que o morticínio tenha sido maior ainda, pois a censura e a violência política da ditadura militar impediram qualquer checagem independente desses dados alarmantes e obscenos.

A partir de 1987, começa uma corrida pelo ouro com invasões cada vez mais frequentes, o que multiplicou os conflitos e a morte de indígenas. Após denúncias internacionais e fruto da persistente mobilização dos indígenas, às vésperas da realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro no ano de 1992, o governo brasileiro foi obrigado a homologar os 96650 quilômetros quadrados da Terra Indígena Yanomami, que contava em 2019 com 26780 pessoas distribuídas em mais de 350 comunidades.

Pouco tempo depois, ocorreu o “massacre de Haximu”, quando 16 yanomami – homens, mulheres e até um bebê morto a facão – foram trucidados por garimpeiros. O crime bárbaro causou comoção mundial e foi o primeiro caso na justiça brasileira de assassinatos de indígenas em que os responsáveis foram julgados por tentativa de genocídio. Dos 23 assassinos, apenas dois acabaram encarcerados. A engrenagem perversa que permite a contínua invasão do território e a perpetuação da violência contra os Yanomami nunca parou de funcionar, espalhando miséria, doença, prostituição e degradação socioambiental.

Tragédia anunciada

Com a chegada do governo Bolsonaro e sua licença para matar e devastar os povos originários, a já complexa situação dos Yanomami alcançou o seu pior momento. São mais de 20 mil garimpeiros que estão presentes em todo o território indígena, ocupação facilitada pelo desmonte das políticas de proteção e pelo discurso oficial de que a mineração (ilegal e predatória) deve ser não apenas tolerada, mas incentivada. Não demorou para os crimes cometidos nesta área remota da floresta amazônica passarem a ocupar manchetes nacionais e internacionais, sem que a indignação social seja minimamente proporcional à brutalidade que lá é praticada sob o olhar cúmplice do Estado brasileiro.

Foi exatamente esse quadro de horror que foi denunciado no relatório “Yanomami sob Ataque!”, preparado pela Hutukara Associação Yanomami, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA), ONG que há várias décadas acompanha o cotidiano da resistência indígena naquela região do país.

São indescritíveis as cenas de terror: pelo menos três crianças e adolescentes entre 10 anos e 13 anos foram assassinadas depois de serem estupradas por garimpeiros, na porção central do território conhecida como polo-base Kayanaú. Cerca de 60% das crianças yanomami estão desnutridas. Malária, Covid 19, sífilis, Aids e outras DSTs e pneumonia assolam a comunidade, enquanto muitos postos de saúde indígena estão ocupados e depredados pelos garimpeiros. Em suma, segundo o relatório, a devastação causada pelo garimpo ilegal bateu todos os recordes, aumentando 46% de 2020 para 2021. Se nada for feito, o genocídio do povo Yanomami estará consumado em pouco tempo.

Encruzilhada civilizacional

“O que fazem os brancos com todo esse ouro? Por acaso, eles o comem?”, bradou o xamã, filósofo e grande líder yanomami, Davi Kopenawa, falando diante do Tribunal permanente dos povos sobre a Amazônia brasileira, em Paris, no distante outubro de 1990. Mais de 30 anos depois, desgraçadamente, é a lógica do lucro e da completa mercantilização da tudo e de todos que está na raiz de todas as desgraças que se abateram sobre seu povo.

A criminosa invasão garimpeira da TI Yanomami possui fortíssimos laços com o poder econômico que mobiliza frota de aviões e uma complexa estrutura logística para abastecer e alimentar as frentes de devastação. Tanto dinheiro, óbvio, estabelece conexões políticas com as elites locais e nacionais, hoje especialmente representadas pelo governo Bolsonaro. É esse caldo de cultura que fomenta o massacre genocida.

Se a violência que aniquila um povo inteiro – portanto, um etnocídio – se integrar à paisagem da barbárie nacional, deixando de escandalizar e mobilizar, nosso país terá escalado um ponto de não retorno. Até quando será permitida a perpetuação de tamanha atrocidade? Até quando as instituições do Estado brasileiro permanecerão em uma postura covardemente cúmplice diante de crimes contra a humanidade?

Se depender da coragem e da disposição de luta dos mais de 8 mil indígenas reunidos no 18º Acampamento Terra Livre (ATL), realizado de 4 a 14 de deste mês, em Brasília, a única resposta possível é a de ecoar resistências, numa clara demonstração que os yanomami não estão sozinhos. A denúncia das atrocidades se articula com o repúdio ao conjunto de ataques que são desferidos pelo governo federal e sua imoral bancada ruralista.

Desde sempre, trata-se da batalha entre civilização ou barbárie, vida ou morte. Com a força ancestral dos xapiri (espíritos, na cultura Yanomami), evocando a ligação profunda com grande terra-floresta (urihi a pree), a vitória está reservada aos de bom coração. Basta acreditar e lutar.