A notícia ganhou o mundo de forma instantânea: na noite da última quinta-feira (14), as palavras emocionadas da cacica Juma Xipaya denunciando a invasão do território de seu povo – uma área de 179 mil hectares encravados no coração da Amazônia Paraense – por garimpeiros fortemente armados causou comoção. Em poucas horas, o protesto da líder da aldeia Karimãa estava estampado em todos os portais de notícias e canais de TVs, após intensa e solidária viralização nas redes sociais. Era iminente o derramamento de sangue. Os guerreiros Xipaya partiram atrás dos invasores dispostos a defender de todas as maneiras possíveis o seu direito a existir e viver em paz nas terras que a Constituição Federal lhes delegou.
Desta vez, houve imediata mobilização de órgãos governamentais. Sob pressão da opinião pública e do Ministério Público Federal (MPF), este caso rompeu o círculo vicioso da inércia que caracteriza a atuação do Estado brasileiro quando se trata de defender os direitos territoriais dos povos indígenas. No sábado (16), agentes do ICMBio localizaram a balsa dos garimpeiros próximos à área conhecida como Riozinho do Anfrísio, dando voz de prisão aos sete ocupantes da embarcação, incluindo dois adolescentes. Vale destacar o empenho dos servidores do IBAMA e do ICMBio, que fazem tudo para cumprir seu dever funcional, mesmo diante da ação deliberada das direções destes órgãos, empenhadas no sistemático desmonte da política de proteção ambiental no país sob orientação do governo Bolsonaro.
Ouvi lideranças Xipaya, através do BT Mais, em condição de anonimato por temerem por sua integridade. Elas afirmam que a maioria dos garimpeiros já não estava na balsa quando da abordagem dos agentes do ICMBio. Haviam se embrenhado na floresta e, agora, representam risco à vida dos indígenas, que rotineiramente saem para pescar ou caçar nas florestas que compõem o território. Para agravar a sensação de impunidade, os indígenas denunciam que os garimpeiros detidos acabaram sendo liberados pela Polícia Federal sem a lavratura de auto e consequente início de inquérito para investigar o crime ambiental cometido. A desculpa da PF, totalmente imoral, dá conta que a distância de mais de 400 Km até a delegacia de Itaituba implicaria numa viagem superior a 24 horas de barco, ultrapassando o período legal de flagrante delito. Ora, por que não foi mobilizado transporte adequado para o deslocamento dos detidos? Por que não foi igualmente iniciada uma busca na região para a localização dos demais invasores? Estes, inclusive, fortemente armados, segundo denúncia dos Xipaya.
Quantas vidas indígenas valem o ouro que tu carregas no teu corpo?
Quantas gramas de ouro vale uma vida indígena? Tu que usa ouro, já se fez essa pergunta? Tu sabes de onde veio o ouro que compras em formato de belas joias nas lojas? Tu sabias que garimpeiros ilegais vendem ouro para empresas que forjam documentos e declaram que o ouro retirado de Terras Indígenas de forma ilegal é de outros territórios? Em 2018, mais de 20 mil toneladas de ouro ilegal foram retiradas do território brasileiro e quase R$ 3 bilhões não declarados, segunda a própria Agencia Nacional de Mineração (ANM). É na Amazônia principalmente que se encontra a maioria de garimpos ilegais do país, em áreas de fronteira, terras indígenas e de preservação ambiental.
A garimpagem se dá de duas formas: a que funciona dentro da lei, com base nas diretrizes da Permissão de Lavrar Garimpo (PLG), e a clandestina, que não tem controle e nem combate do estado e é justamente a que o governo Bolsonaro defende.
Não quero culpar ninguém, mas se tem ouro é porque tem comprador. Quero que tu reflitas para que serve mesmo o ouro que tu compras. Se você parar de comprar, estará salvando vidas indígenas e protegendo a natureza.
Sigam o dinheiro: quem lucra com a devastação da floresta
A embarcação utilizada pelos invasores da TI Xypaya chamou atenção pelo tamanho e estrutura. A balsa possui acoplada uma draga e uma esteira. Calcula-se que um equipamento como este esteja orçado em mais de um milhão de reais. Cai por terra a falácia de “garimpo artesanal”. Na verdade, por trás da legião de garimpeiros – estes, sim, geralmente pobres e sem-terra – está formada uma rede de comerciantes empresários e políticos locais, que lucram – e lucram muito – com a devastação criminosa da floresta amazônica.
Para desbaratar essas organizações que agem à margem da lei, é preciso cortar suas fontes de financiamento. Afinal, os garimpos no meio da floresta exigem complexa e milionária logística de abastecimento e transporte, com barcos, aviões, armazéns e outros serviços. Na região do garimpo, todo mundo sabe quem são os “patrões” do garimpo ilegal. O impressionante é que somente a Polícia Federal faz de conta que não sabe.
Sem que os envolvidos tenham prestado depoimento, talvez jamais seja revelado quem estava por trás da invasão da TI Xipaya. Encontrar esses mandantes é fundamental para desarticular a atividade ilegal que está matando rios da Amazônia, como o Tapajós, de forma tão acintosa que os efeitos da contaminação já atingem populações a centenas de quilômetros da TI Munduruku, violentada de forma permanente por centenas de invasores.
O enredo é sempre o mesmo: estimulados pelo discurso do governo Bolsonaro e pelos projetos de lei em tramitação no Congresso – especialmente o PL 191/2000, que libera a atividade garimpeira em Terras Indígenas -, as invasões se multiplicam. Quando há uma denúncia de maior repercussão, as autoridades realizam ações pontuais. Mas, logo depois, retiram-se do território, deixando a porteira aberta para um novo e mais violento ciclo de invasões e depredações do meio ambiente. Quem acaba exposto a risco de morte são as lideranças indígenas que têm a coragem de denunciar e exigir providências. Lideranças Xjpaya fazem questão de revelar a preocupação com a segurança pessoal da jovem cacica Juma, que foi a voz que se levantou contra a violência que ameaça seus parentes. Quem irá protegê-la das eventuais e previsíveis retaliações por parte dos que financiam e exploram a extração ilegal de ouro? Quantas gramas de ouro vale a cabeça de uma liderança indígena?
Escudos humanos em defesa da floresta
19 de abril, “Dia do Índio”, não tem como ser um momento de festa. A origem desta data remonta a um decreto de Getúlio Vargas, editado em 1943, em plena ditadura do Estado Novo. A data faz remissão ao Congresso Indigenista Interamericano, realizado três anos antes no México, entre 14 e 24 de abril, reunindo 55 delegações oficiais, para propor medidas de proteção aos indígenas das Américas. Hoje, o mês de abril é dedicado aos povos indígenas e à divulgação de suas lutas. A resistência do povo Xipaya em defesa de seu território serve de exemplo do caminho a seguir. Eles não andam sós.
As terras indígenas ocupam 13,9% do território nacional, numa extensão de 109,9 milhões de hectares de floresta nativa. Muitos dizem: “muita terra para pouco índio”, dando a senha para novas ondas de invasão e saque. Mas, na realidade, é pouco indígena para lutar em defesa de algo que deveria ser obvio para todo o povo brasileiro que é a vida. Nós indígenas somos os verdadeiros escudos humanos em defesa da natureza.Com nossos corpos, protegemos um patrimônio que é de todo o povo brasileiro. É o que revela o recente estudo do projeto MapBiomas, cujas principais conclusões foram antecipadas pelo Estado de São Paulo, em sua edição de hoje (19). Nas últimas três décadas, enquanto a perda de vegetação nativa em áreas privadas foi de 20,6%, em Terras Indígenas esse percentual foi de apenas 1%. É por isso que a pressão sobre essas áreas protegidas cresceu tanto nos últimos anos, potencializada em grande escala após a posse de Jair Bolsonaro. E o garimpo ilegal tornou-se a principal ameaça à integridade das Terras Indígenas, tendo a área ocupada por essa atividade crescido cinco vezes entre 2010 e 2020.
Para nós,povos indígenas, não há natureza separada do ser humano e nem floresta segregada da espiritualidade ancestral. Davi Kopewana, autor do magistral A queda do céu, palavras de um xamã yanomami (Companhia das Letras, 2015), ensina que “natureza é, na nossa língua antiga, Urihi a, a terra-floresta, e também sua imagem, visível apenas para os xamãs, que nomeamos Urihinari, o espírito da floreta. É graças a ela que as árvores estão vivas.”
Neste mês de visibilidade da luta dos povos indígenas, mais do que nunca, é hora de refletir, o ouro que tu carregas no teu pescoço custou a vida de crianças, anciãos e lideranças indígenas. É hora de renovar nosso pacto pela sobrevivência da humanidade. Sobrevivência em harmonia e comunhão com a natureza. Sobrevivência como promessa de um futuro de fartura e felicidade para todos. A defesa da vida não pode ser uma responsabilidade somente dos povos indígenas. Está lançado o desafio!