21.06.22
Carta ao futuro
(que espero um dia ser lida pela neta que ainda terei)
Querida neta,
Feito mensagem na garrafa, que cruza mares e rios trazendo pedidos de socorro, esta carta está sendo lida por ti, meu amor, com várias décadas de distâncias do tempo em que escrevo.
Tempo de muita angústia.
Tempo de muita dor.
Sei que para você e para sua geração não é nada fácil compreender como nosso país, tão vasto e tão rico, tenha se tornado na altura de 2022, num lugar onde lutar por direitos (das pessoas humanas e da Natureza, nossa mãe) pode representar a assinatura de uma sentença de morte.
Sim, de morte matada, esquartejada, incendiada.
Nestes dias tenebrosos, recebi como um soco no estômago, a notícia do assassinato de dois grandes amigos dos povos indígenas: Dom Philips, jornalista britânico e Bruno Pereira, indigenista brasileiro. Foram tocaiados na manhã do domingo, 5 de junho, em plena Amazônia, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari.
A covardia e a truculência dos agressores revelou um ódio que vem de tempos remotos, desde que os europeus invadiram nosso território. Invadiram para saquear, escravizar, contaminar e matar. Invadiram para roubar nossas riquezas e destruir nosso modo tradicional de vida. Trouxeram a Cruz e a Espada. Com ambas tentaram nos extinguir.
Para você saber: nos primeiros três séculos da chamada colonização, 3 milhões de parentes indígenas foram mortos. O nome disso é genocídio, um dos mais sangrentos da história da humanidade.
Mas, como justificar, que em pleno século 21, essas atrocidades ainda aconteçam?
Dom e Bruno foram massacrados.
Atiraram na cabeça e no tórax de Bruno.
Atiraram mortalmente no peito de Dom.
Não satisfeitos, esquartejaram e queimaram seus corpos, depois depositados numa vala no meio da selva.
O que eles fizeram para atrair tanto ódio?
Defenderam com suas próprias vidas o direito dos povos indígenas à existência, o que significa manter seu território ancestral com o direito de explorar racionalmente as enormes riquezas que lá existem, segundo o que vem sendo feito a gerações e gerações
O mais inacreditável é que as mais altas autoridades da República deram apoio aos assassinos, culpando as vítimas e jogando lama na memória dessas pessoas.
Segurando os cordéis dessas mãos cruéis, capazes de massacrar dois homens indefesos e desarmados, estão não apenas um presidente genocida (cujo nome, Jair Bolsonaro, nestes dias que você me lê, certamente faz companhia no lixo da história no mesmo lugar profundo onde estão enterrados Hitler, Mussolini e outros tantos assassinos em massa).
Junto a essas mãos covardes estão também toda uma elite perversa que se beneficia do modelo concentrador de renda e devastador das riquezas naturais.
Eu os acuso: assassinos covardes!
Nestes dias tenebrosos, de violência extremas e atrocidades que se multiplicam, sonham (e lutar) por dias melhores é o que me mantém em pé.
Estou convencida que, nos dias em que estiver lendo essa carta, na virada da segunda metade deste século 21, os tempos serão outros.
Você e sua geração viverão em um país efetivamente livre e justo.
O Brasil, finalmente, terá encontrado seu destino de ser uma terra da fartura e do
Bem-viver.
Terá orgulho de ser uma Nação de incontáveis povos, com suas línguas e tradições sendo motivo de enorme alegria.
Neste instante, em que celebraremos a diversidade e a gigantesca riqueza que brota de nossas tradições milenares, peço que você recorde e preste homenagem aos que deram a própria vida para que isso pudesse acontecer.
Receba o beijo carinhoso de tua avó,
Nice Tupinambá.