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Exclusivo: BT revela sistema clandestino de transporte fluvial funcionando na Ilha do Marajó

Os portos clandestinos estão localizados nas comunidades ribeirinhas de Aranaí, Xipaiá, Caracará, Anuerá, Urubuquara e Chipaia. Salvaterra e Cachoeira do Arari concentram o maior fluxo de transporte no Marajó.

Depois da tragédia com o naufrágio da embarcação ‘Dona Lourdes II’, que aconteceu em 8 de setembro , o BT descobriu um esquema de transporte clandestino que opera na Ilha do Marajó, com pelo menos seis portos irregulares em comunidades ribeirinhas e que segue expondo a vida da população que precisa ir e voltar do arquipélago para a capital. Salvaterra e Cachoeira do Arari concentram o maior fluxo de navegação no transporte de passageiros que se sujeitam a este mercado ilegal e extremamente arriscado.

Ao descortinar esse sistema, é possível começar a entender a dinâmica de atuação das diversas embarcações, e o que resultou no naufrágio da embarcação ‘Dona Lourdes II’, originando o acidente com 22 vítimas, 66 sobreviventes e uma criança desaparecida, que segue sendo procurada pelas equipes de busca, desde o ocorrido.

Para compreender melhor como esse sistema funciona, é preciso entender a dimensão do Marajó, que é chamado de ilha, mas na verdade, é um arquipélago que concentra um conjunto de ilhas com 17 municípios.

Mapa que mostra geograficamente Marajó e Belém. Imagem: Reprodução.

Além dos municípios principais, o arquipélago é território de diversos vilarejos, que não possuem infraestrutura, como acesso a hospitais ou bancos. Ocorre que, diariamente, os marajoaras precisam se deslocar para a capital paraense para cumprir seus compromissos, e necessitam recorrer ao transporte fluvial, percorrendo uma distância de pelo menos 140 quilômetros. Mas isso depende do município. O percurso chega a ser de 221 quilômetros para Breves, e 275 quilômetros para Afuá. Distâncias estas que superam 13 horas de viagem fluvial.

Esse sistema clandestino e irregular não foi criado recentemente, mas há décadas, e nasceu da necessidade de transporte dessa população. Esses portos atendem especialmente as comunidades de Salvaterra, Cachoeira do Arari, Soure, Chaves e Ponta de Pedras. Esse sistema opera na Ilha de forma bem articulada, favorecido pela falta de fiscalização dos órgãos competentes.

Uma prática que é realizada de forma improvisada, sem autorização legal, sem inspeção técnica e totalmente em desacordo com as diretrizes de segurança da navegação. As investigações mostraram que a lancha ‘Dona Lourdes II’ não tinha lista de passageiros e estava com excesso de ocupantes. A lotação máxima era de 82 pessoas na embarcação, mas segundo testemunhas, a lancha tinha mais de 100 pessoas.

Ou seja, o transporte clandestino funciona sem seguir regras de segurança, com venda informal de bilhetes, sem passar pelo aval de entidades oficiais, além de sair de portos que são improvisados. Foi isso que aconteceu com a ‘Dona Lourdes II’, que saiu do porto irregular chamado popularmente de “Camarazinho”, em Cachoeira do Arari.

Imagem da lancha ‘Dona Lourdes II’, no Porto clandestino Camarazinho, em Cachoeira do Arari. Imagem: Reprodução.

Uma das pessoas ouvidas pelo BT é Dario Pedrosa, coordenador da comissão, que representa os moradores da Ilha que promoveram manifestações populares, como o fechamento do porto de Salvaterra. Eles negociam com o poder público novas medidas para assegurar segurança no transporte de pessoas entre Belém e o Marajó.

Moradores de Salvaterra fecham o Porto oficial em protesto após o naufrágio. Imagem: Reprodução.

Fontes anônimas revelaram ao BT que em Cachoeira do Arari existem seis portos clandestinos funcionando normalmente, escondidos da fiscalização, e que, de oito a dez empresas diferentes utilizam os portos ilegais para embarcar e desembarcar passageiros, assumindo todos os dias, altos riscos, de promover uma nova “tragédia anunciada”, termo que o povo marajoara vem usando para se referir ao acidente da última semana.

Porto clandestino na comunidade Vila Humarizal, que é utilizado por habitantes da Vila de Camará. Imagem: Reprodução.

Dois sobreviventes do naufrágio da ‘Dona Lourdes II’, que preferiram manter o anonimato, disseram ao BT que só tomaram conhecimento de que a embarcação era clandestina depois do acidente, assim como o porto de onde saíram. “Eu sempre ouvi as pessoas e vizinhos meus dizerem que existem esses portos (clandestinos) na Ilha do Marajó, mas eu só compro bilhetes nos Portos autorizados. Só descobri que a lancha que naufragou era clandestina quando eu estava dentro dela”, disse a sobrevivente.

COMO FUNCIONA A DINÂMICA DESSE TRANSPORTE CLANDESTINO?

Alguns portos clandestinos no Arquipélago do Marajó estão localizados nas comunidades ribeirinhas de Aranaí, Xipaiá, Caracará, Anuerá, Urubuquara, Gurupá e Chipaia.

Porto clandestino na Comunidade Caracará, no Marajó. Imagem: Reprodução.

Na imagem abaixo é possível perceber o porto irregular na comunidade de Chipaia, onde, segundo os moradores, viagens clandestinas seguem sendo realizadas, às escondidas, em uma lancha de nome ‘Cobra’ que leva 70 pessoas na embarcação.

Porto irregular de Chipaia, onde viagens clandestinas seguem acontecendo. Imagem: Reprodução.

O Porto está situado dentro da Comunidade ribeirinha de Chipaia, que fica no município de Cachoeira do Arari. A estrutura fica às margens do Rio Caracara, onde encosta, todos os dias, a embarcação que transporta os moradores da comunidade.

Porto irregular de Chipaia, em Cachoeira do Arari, às margens do Rio Caraca. Imagem: Reprodução.

Segundo Pedrosa, as empresas trabalham com mais de uma embarcação para driblar a fiscalização. Quando uma lancha, de determinada empresa, por exemplo, é pega pelos órgãos fiscalizadores, principalmente através de denúncias dos próprios usuários, o dono da empresa é notificado para se regularizar. Exatamente como aconteceu com a MD SOUZA NAVEGAÇÕES, que é o nome da empresa dona da embarcação ‘Dona Lourdes II’.

Embarcação ‘Dona Lourdes II’. Imagem: Reprodução.

A empresa está cadastrada no nome da mãe de Marcos de Souza Oliveira, que comandava a lancha, no momento em que a embarcação naufragou. Ele sobreviveu ao acidente, fugiu, e foi preso pela Polícia Civil no dia 13 de setembro, enquanto tentava se esconder, em Ananindeua.

Marcos de Souza Oliveira, que comandava a lancha quando ela afundou nas água, sendo preso. Imagem: Reprodução.

A MD SOUZA NAVEGAÇÕES já tinha sido notificada por duas vezes pela Agência de Regulação e Controle dos Serviços Públicos do Pará (Arcon). Então, para fugir da fiscalização, a empresa possuía outras duas embarcações: Clicia e Expresso. Uma das embarcações já havia sido apreendida pela Marinha do Brasil.

Depois do acidente com a embarcação Dona Lourdes II, alguns transportes clandestinos comuns no Marajó cancelaram viagens por conta da fiscalização que passou a ser mais contundente depois do naufrágio.

Print de mensagem compartilhada em grupo de mensagens onde bilhetes e viagens são anunciadas.Imagem: Reprodução.

MORADORES RECLAMAM DO SERVIÇO REGULAMENTADO PELA ARCON

Outro fator que impulsionou a prática irregular na região está relacionada à insatisfação que a população tem com as duas empresas autorizadas pela Arcon. As empresas são Arapari e Banav Navegações, sendo que uma delas apresentou problemas 10 dias depois no naufrágio da lancha Dona Lourdes II. Os tripulantes fizeram vídeos do momento.

O coordenador da comissão, Pedrosa, também contou que existem pontos de embarque e desembarque clandestinos que recebem essas embarcações em Belém, os portos estão localizados em Icoaraci, onde encostaria o ‘Dona Lourdes II’, e também na Pedra do Peixe, no Mercado do Ver-o-Peso.

HISTÓRICO

Pedrosa explica que as empresas clandestinas se instalaram no Marajó há mais de 10 anos. “Essas empresas perceberam a insatisfação e o péssimo serviço das empresas autorizadas pela Marinha e Arcon para atuarem aqui, e se apresentaram como outra alternativa para transportar a população. E quem sofre e se arrisca é o povo marajoara, que precisa trabalhar, estudar, fazer consultas médicas e outros compromissos em Belém, e se sujeitam a esse serviço clandestino, que se enraizou aqui na Ilha”, pontuou.

INFLUÊNCIAS CLIMÁTICAS

Tempo de ‘proa’: Nos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro, as águas ficam mais agitadas por conta da maior influência do oceano atlântico. O vento ganha força e se transforma em ventania, o que exige mais atenção e habilidade técnica dos comandantes das embarcações, na travessia pelas águas.

Segundo o meteorologista José Raimundo Abreu, de forma técnica, o tempo de ‘proa’, significa uma alteração climática que incide no Pará, a partir do mês de agosto. “Ocorre uma mudança na posição do sol, que fica em cima da linha do Equador, o que faz com que a temperatura suba, e assim, os ventos se intensificam, porque a temperatura do oceano é diferente da temperatura em Belém e na Ilha do Marajó, por exemplo. A velocidade média do vento sobe. Além disso, as águas da Baía ficam bem mais agitadas, e sim, tudo isso prejudica a navegação e pode provocar acidentes’, contou.

REIVINDICAÇÕES

A tragédia provocada pelo naufrágio deixou a população marajoara revoltada, indignada, e concentrou energias realizando protestos, fechando ruas e do Porto da Foz do Rio Camará, por onde passa grande fluxo de transporte fluvial em Salvaterra, legalizado para o serviço.

O principal pedido dos manifestantes é a expulsão das empresas Arapari Navegações e Banav, e a realização de uma licitação para escolher novas empresas para renovar a oferta do serviço. No entanto, em conversas com representantes do Governo do Pará, as reivindicações dos manifestantes não foram atendidas integralmente. As atividades da Banav e Arapari estão suspensas por 30 dias até que o Estado encontre uma saída através da análise técnica do serviço, conforme explicou o secretário de Transporte, Adler Silveira.

FLAGRANTE

O BT foi em um dos pontos denunciados pelas fontes ouvidas, como portos clandestinos de embarque e desembarque de passageiros, no centro de Belém, na Pedra do peixe, no Ver-o-Peso, e conseguiu flagrar o esquema em funcionamento. As embarcações chegam de municípios da Ilha do Marajó, de modo que, algumas transportam entre oito e dez pessoas em meio às cargas, como frutas e açaí, que são comercializados no local. Enquanto outras embarcações transportam de 20 a 30 pessoas, que precisam se deslocar até Belém para receber benefícios como seguro defeso, INSS e auxílio Brasil, por exemplo.

As embarcações saem e chegam durante a semana e também nos finais de semana, quando a maré está cheia, para facilitar na chegada e saída.

Em conversa com um guardador de carros, que trabalha no local, ele revelou detalhes do transporte e a aquisição de passagens em uma embarcação que estava prestes a sair do Ver-o-Peso,com destino ao Marajó.

SITUAÇÃO ATUAL

Por conta da insatisfação da população, com relação às empresas que já operam ofertando o serviço de transporte de passageiros, Banav e Arapari Navegação, em função de constantes problemas em suas embarcações, a Arcon liberou a atuação de duas novas empresas para realizar o transporte de passageiros da Ilha do Marajó para Belém. Uma balsa e duas lanchas começaram a executar o serviço, transportando passageiros, cargas e veículos entre Belém e o Porto de Camará.

DADOS

De acordo com a Marinha do Brasil, por meio da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR), no Pará, Em 2022, até setembro, ocorreram 29 naufrágios. Em 2021, também foram 29 naufrágios. Em 2020, 18 naufrágios. E, em 2019, 24 naufrágios.

POSICIONAMENTO DOS ÓRGÃOS

A Agência de Regulação e Controle dos Serviços Públicos do Estado do Pará (Arcon- Pa) informou que,  o órgão competente pela navegabilidade nos rios da Amazônia, e portanto responsável por combater o transporte hidroviário clandestino é a Capitania dos Portos. Cabe à Arcon fiscalizar a prestação dos serviços do transporte hidroviário intermunicipal nos portos autorizados.

A Arcon mantém a interrupção das duas empresas operadoras citadas, e segue avaliando a qualidade dos serviços oferecidos à população do Marajó, com as novas embarcações que começaram a fazer o trajeto Belém/ Porto de Camará e no sentido inverso, desde a última terça-feira, 13. Esclarecemos  ainda que por conta das vedações eleitorais, as novas licitações encontram-se suspensas.

Trabalho de fiscalização da Arcon/PA. Imagem: Reprodução Arcon/PA.

Já a Capitania dos Portos, disse em nota, que a fiscalização de Portos é de competência da Agência de Regulação e Controle de Serviços Públicos (ARCON-PA).

A fiscalização do tráfego aquaviário é realizada diuturnamente, tanto na orla de Belém quanto em outras localidades, por equipes de Inspeção Naval da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR), da Capitania Fluvial de Santarém (CFS) e Capitania dos Portos  do Amapá (CPAP), além de também empregar os Navios e militares do Comando do Grupamento de Patrulha Naval do Norte, por ocasião das patrulhas navais programadas.

Sobre a apreensão de uma embarcação da MD Souza Navegações, a Marinha do Brasil esclarece que o nome CLICIA X EXPRESSO refere-se somente a uma embarcação e que a mesma foi inspecionada e apreendida pela Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPAOR).

Sobre os portos clandestinos e embarque e desembarque no Ver-o-Peso, o BT entrou em contato com a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) sobre a situação dos portos irregulares, mas não teve resposta até a última atualização dessa matéria.