//

Pesquisador da UFPA fala sobre conflitos em comunidades tradicionais em Barcarena: ‘estão lutando para sobreviver’

O BT entrevistou o pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa Social, Territorial e Resistência na Amazônia, da Universidade Federal do Pará, Marcel Hazeu, sobre o seu trabalho de mais de 11 anos no bioma, especialmente em Território do Conde, em Barcarena, no Pará, ao lado das comunidades e povos originários que resistem e sobrevivem na região.

Fruto do seu tempo de trabalho dentro do contexto do conflito, Hazeu colheu diversos relatos das comunidades e fez pesquisas aprofundados para compreender a problemática do lugar que é cobiçado por grandes empresas internacionais, uma vez que as comunidades estão espalhadas entre as empresas. A imersão nesse panorama resultou na produção de um livro em coautoria com a professora Solange Gayoso de nome ‘Amazônia em guerra: (re)existência e disputa territorial em Barcarena’, que destrincha o assunto em todas as suas características e nuances. São 140 páginas que falam de anos e anos de disputa.

“O livro nasce a partir da observação do grupo de estudo e pesquisa social e territorial da Amazônia sobre as 17 comunidades que vivem no chamado distrito industrial de Barcarena. As comunidades estão espalhadas sobre diversas empresas como Imerys, muitas empresas de soja. Essas comunidades estão lutando para sobreviver, viver sem poluição e recuperar o que foi perdido e invadido”, explicou Marcel sobre a ideia do livro.

Pesquisador Marcel Hazeu. Imagem: Reprodução.

COMO O ESTADO PARTICIPA DESTE CENÁRIO?

“O governo tem um plano de ocupar essa área com empresas e indústrias, transformar a área em um lugar livre de pessoas, somente com indústrias e portos. As empresas que vêm para a Amazônia precisam de indústrias e portos para poder exportar. Então Barcarena é um município muito estratégico para o capital brasileiro, com muitas áreas para instalação de prédios, portos e indústrias. E tem saída estratégica para o mar”, afirmou.

Ainda sobre a participação estatal na Vila do Conde, em Barcarena, o pesquisador detalhou:

“O governo do estado planeja avançar sob a Amazônia com projetos de desenvolvimento capitalista e que devem integrar todas as áreas para beneficiar o orçamento do Brasil, e não a Amazônia. Então são vários interesses totalmente contraditórios às comunidades que querem viver da pesca, do comércio e da agricultura. As empresas preferem um território sem árvores, terraplanado, usando a água para processos industriais. E o governo do estado escolheu o lado do capital nessa história, ele está facilitando o acesso das empresas e o seu funcionamento. Existe uma guerra pelo território, entre todos que podem morar lá e quem pode ter o seu modo de viver garantido”, disse.

“O Estado tem um papel muito estratégico nisso, junto das empresas, principalmente a Imerys, que é a maior no distrito. As comunidades dizem que se não estivessem lá, isso seria uma ‘bomba ecológica’. Nós denunciamos pois sentimos logo na pele, quando poluem nossa água, ficamos sem ter o que beber e soamos o alarme”. Ou seja, o sistema de controle ambiental é das comunidades”, detalhou o pesquisador. 

HISTÓRICO DA CHEGADA DE EMPRESAS ESTRANGEIRAS EM BARCARENA

Segundo Hazeu, antes da Colonização não havia o Estado, tinham povos, tinham comunidades. Mas quando os colonizadores chegaram, eles criaram um estado de exceção.

“O governo garantia que o povo não atrapalhasse os interesses da colônia. O estado sempre foi contra a população, sempre explorou as riquezas da colônia. Quando nos tornamos independentes, não foram os indigenas, quilombolas, as pessoas escravizadas, mas os portugueses eu seus descendentes que proclamaram a independência para continuar a opressão e exploração dos povos originários e africanos. O estado vê o território como um lugar para explorar. Com o avanço do capitalismo, se reforçaram estratégias mais eficientes para avançar sobre o território. A Amazônia era vista como uma abertura, um lugar mais acessível para exploração de um território que nunca foi vazio. Esse avanço ampliou a guerra”, contou.

“A fuga dos indígenas para se esconder desse avanço é uma das consequências da guerra. A maioria morava nas beiras dos rios, tinham cidades e povoados que foram invadidos, colonizados e parte da sua população escravizada. Então, o modo de vida que tinham foi mudado para povos isolados, que se isolaram como um meio de refúgio para não serem capturados ou mortos pela colonização.

CONSEQUÊNCIAS

“As comunidades tradicionais da Amazônia são impactadas tanto pela poluição quanto pela disputa de terras. Eles precisam de grandes extensões de terra, com acesso à natureza, com acesso aos rios, essas são justamente as áreas mais estratégicas para o capital. Quando você perde o acesso ao rio, ou o rio é poluído, quando você não pode tirar frutas e caçar e fazer roça, você precisa mudar de vida, precisa migrar para a cidade. Então, as nossas periferias estão todas lotadas de refugiados deste processo. Eles são expulsos, e não tem para onde ir, quando não te tiram da sua terra, mas você não pode mais sobreviver lá”, pontuou Marcel.

GARIMPO

“A maioria dos garimpeiros não são bandidos querendo matar indígenas, são pessoas que foram expulsas de suas terras, e procuraram outras possibilidades de sobrevivência, o garimpo é uma. Ou você vive como empregado dessas indústrias, onde existem pouquíssimas vagas de sub-empregos temporários. É uma indústria que destrói mais empregos do que cria”, ponderou o pesquisador.

Para Marcel, o conflito na verdade é uma guerra sem fim, e sem equidade entre as partes.

“São 500 anos de guerra, uma guerra onde a população consegue sobreviver e ampliar suas forças através de algo que está presente ali e que faz com que as comunidades permaneçam ali. O mais importante nessas comunidades é o fato de elas existirem, e continuarem mantendo o seu modo de vida diferenciado, defendendo o seu território e com outras visões sobre o que pode ser feito localmente. 

RESISTÊNCIA

“A presença deles ali, a sua existência, é a maior resistência que eles têm. Por isso a gente usa uma palavra que vem do Valto Porto Gonçalves, geógrafo, que é (re) existência, ou seja, a resistência só pelo fato de existir. As comunidades aprendem cada vez mais com os instrumentos que os oprimem e sobre como funcionam as empresas e a legislação e como usar a legislação a seu favor. A legislação é o que lhes garante direitos, eles podem não estar sendo implementados, mas existem, e se existem nós vamos exigir, vamos denunciar, nos organizar e apelar para que esses direitos sejam garantidos. Isso cria tensões nessa guerra de existir e resistir”, ponderou Hazeu.

“As comunidades tradicionais sabem que podem usar elementos a seu favor, como denunciar mundialmente, para gerar um descontentamento. Como foi na época da colonização. Eu sou holandês, na Holanda a escravidão já era proibida há muito tempo, mas os holandeses que colonizaram Suriname e a Indonésia escravizaram milhões de pessoas, mas isso não chegava aos conhecimentos gerais. Então os holandeses tinham uma imagem humanista por uma desconexão com o que estava acontecendo lá fora. Algo parecido com o que acontece hoje nos EUA e na Europa, há uma idealização do seu lugar. Posto isso, as comunidades começam a entender que é importante provocar uma tensão na base, mesmo com forças tão contraditórias e desiguais”, afirmou.

“Meu filho me diz que essas empresas e as pessoas do Estado, que só pensam em desenvolvimento industrial, perderam seu contato com a natureza, elas na verdade são seres mortos, mesmo não sabendo, elas já morreram. Quando você perde seu vínculo com a natureza, você morre, então nós estamos sendo governados por pessoas mortas, nós que ainda estamos vivos estamos muito à frente deles, devemos valorizar o fato de nós estarmos vivos”, avaliou.

PAPEL DAS UNIVERSIDADES

Sobre a atuação e o papel das universidades e dos estudantes e pesquisadores, Hazeu acredita que: “Na maior parte a universidade faz pesquisa para a empresas, como operar com menos poluição, qual a melhor legislação para garantir esse desenvolvimento, técnicas processuais etc. Mas tem uma parte da universidade que está preocupada com a conexão com a natureza e com os povos tradicionais, em garantir a chamada “sócio-ambiental”. Não existe floresta sem as pessoas que cuidam da floresta, se você tira essas pessoas dali, o lugar morre, e as pessoas morrem também”, disse.

MUDANÇA DE GOVERNO FEDERAL

O pesquisador também analisou a mudança de governo: sai Jair Bolsonaro e entra Lula. “O avanço do capital na época do governo Lula (antes de 2023) foi muito estimulado e muito rápido, inclusive por atos autoritários, usando o poder do governo federal em nome do interesse nacional acima de direitos por lei garantidos, que não respeitam a Constituição em nome do interesse nacional. Então nós não temos a ideia de que o Lula vai fazer uma grande mudança nessa tendência, até porque o estado nasce contra o povo, então se você assume um lugar nesse estado, você não vai mudar toda essa lógica interna. O Estado funciona a partir dessas empresas, a economia internacional é racista por natureza, pois foi criada a partir da escravidão”, disse.

“Eu acho que muita coisa mudou em relação ao governo anterior. O governo Bolsonaro foi um ataque direto ao meio-ambiente, à Amazônia, aos povos indígenas e quilombolas que perderam grande parte dos direitos que tinham conquistado e não conseguiram avançar com sua luta. Hoje temos um ministério dos povos indígenas, isso já indica uma possibilidade de olhar para essas questões com um olhar mais otimista. Porém, o Lula também fala de desenvolvimento, crescimento econômico, fala em retomar os Pacs – Programas de Aceleração de Crescimento, que era uma política econômica. Esses foram os elementos que aceleraram a chegada e implementação dessas empresas aqui”, finalizou Marcel Hazeu.