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Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB emite carta sobre episódio de violência no jogo do Remo

O FUTEBOL E A SOBREMESA INDIGESTA

Perdão, infelizmente meu post hoje tem narrativa gráfica.

Ontem, no “Novo” Mangueirão, ocorreu uma tragédia em função de um velho problema dos nossos estádios: A VIOLÊNCIA

Um torcedor do Corinthians morreu após ser atingido por uma arma caseira e ter suas costas literalmente arrombadas pelo armamento (uma arma sim, pois um suposto rojão que faz um rombo daquele nas costas de um ser humano não pode ser considerado um simples rojão) em, de acordo com a Polícia Militar, uma emboscada supostamente feita por torcidas.

Como Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, torcedor, praticante e amante do futebol não tenho como não me indignar com o referido fato, principalmente nos dias de hoje, onde discutimos de forma clara a inclusão nos estádios, inclusive através de um projeto admirável da FPF para o nosso Campeonato Paraense de Futebol que o “Parazão da Inclusão”.

Ok, tudo bem que o Torneio de ontem era a Copa do Brasil e não o Parazão, porém, o esporte e o local são os mesmos onde a nossa população vai torcer para seus clubes de futebol.

O Governo do Estado anunciou milhões na reforma do estádio do Mangueirão que, de fato, ficou muito bonito e deve-se elogiar a iniciativa, porém, os mesmos milhões não resolveram problemas estruturais do estádio, assim como não veio articulado de um trabalho interdisciplinar e apurado sobre a movimentação de pessoas e que ele provoca.

Continuamos a ver engarrafamento de acesso aos portões do estacionamento, continuamos a ver tumulto, aglomeração e risco de pisoteamento nas catracas e problemas de acesso e abrigo para pessoas com dificuldade de locomoção (a foto do rapaz de cadeira de rodas pegando chuva com um guarda chuva na sua frente tapando a visão do jogo é emblemática).

Só isso já seria o suficiente para espantar qualquer pai e mãe de levarem seus filhos aos estádios, pois o mangueirão continua a ser um espaço feito para adultos que conseguem usar plenamente duas pernas e de se defender quando ocorrer alguma confusão. Fora isso, é passar e submeter as crianças a um perrengue inexplicável.

Fosse só isso, ainda poderiam dizer que era “frescura” minha escrever sobre isso, mas vamos lá, tem mais.

Dentro do estádio, quando chegamos para torcer, os gritos e cânticos que nos deparamos ouvindo as torcidas gritando são cânticos extremamente transfóbicos que tentam ofender o torcedor rival associando-os mutuamente ao gosto pela genitália masculina.

E aí estão lá uma centena de pessoas repetindo essa asneira criminosa e transfóbica sem que a Polícia e autoridades (clubes incluídos) não façam ABSOLUTAMENTE NADA.

Para piorar, o novo Mangueirão não corrige um problema para mim que é fundamental para a inclusão que seria o espaço familiar.

Na lógica arquitetônica e segregacionista dos estádios, quem está de um lado não pode ir para o outro. Mas se uma família tem um pai ou mãe que torce para um time e o filho ou filha menor para outro? Como faz? 

Bom, a inclusão foi pra cucuia, pois ou o filho ou filha passa a ser obrigada a torcer pra um time que geralmente o pai impõe (como se fosse um orgulho ou grande façanha familiar) ou simplesmente esse filho menor não vai ou vai com outra pessoa e aí se perde um bom momento de vivência familiar.

Na verdade, não tem nada inclusivo no Novo Mangueirão e nos estádios paraenses em geral, que são estádios que chamo de “estádios de cimento e bunda” e não adianta fazer uma reforma com milhões se a mentalidade do direcionamento do uso desse recurso não enxerga esses buracos na hora de se planejar o projeto e vivência diária do espaço.

NÃO HÁ EMPATIA no projeto do Novo Mangueirão e nem empatia na mentalidade da maioria das pessoas que detém poder dentro do espaço do futebol. Mas o que isso tem a ver com o torcedor corinthiano que morreu Zé Maria? Simplesmente TUDO.

Porque não há ação racional e eficaz da segurança pública no planejamento de suas ações para o futebol e olha que estamos falando de um evento que dura entre preparativos e finalização, cerca de umas 8 horas, entre ir pro estádio e sair de lá e que envolve cerca de 70.000 pessoas entre torcedores e mobilização e, portanto, deveria ser tratado com muita, mas muita inteligência.

SERIA INADIMISSÍVEL, porém, acaba parecendo óbvio, que a mesma segurança pública que não consegue fazer um simples trabalho de investigação e inteligência para detectar quem são os cidadãos que vão todo jogo ensinar as nossas crianças que torcedores do rival com palavras baixas e impedirem essas pessoas de reproduzirem esses cânticos criminosos todo domingo em nossos ouvidos, não vão conseguir também investigar e antever que pessoas com a intenção criminosa de uso do esporte para extravasar a sua violência acertem a porra de uma emboscada com um armamento que produz um rombo daqueles nas costas de um ser humano e, sim, com a intenção deliberada de  matar uns aos outros.

Infelizmente, não adianta dar espetáculo arquitetônico e de luzeszinhas pra TV se as nossas crianças correm perigo do lado de fora do estádio. Não dá.

O que a gente vê de segurança pública é ostentação de equipamento, de cavalaria, de viaturas, até drone, e porrada, muita porrada, gás de pimenta (que virou “oi” e vírgula na nossa PM pois parece que ela só se comunica através da linguagem de sprays de pimenta com os cidadãos) como se esses criminosos fossem ter medo de uniforme da PM, porque eles  simplesmente não tem medo de nada a ponto de tacar um armamento caseiro daquele de fogo, nas costas de um cidadão no estacionamento de um estádio na frente de todo mundo que tá lá ao redor e poderiam também ser atingidos e, tenham certeza, quem viu não vai testemunhar em juízo.

A gente não vê trabalho de inteligência da segurança pública nos estádios e se existe, não está dando resultados, porque todo domingo eu escuto e vejo a mesma ladainha transfóbica que é apenas um dos reflexos da violência nos estádios.

O Governo do Estado precisa urgentemente abordar esse problema como um problema sério, enxergar que isso sim é prioridade e não “frescura” e que precisa sim de uma força tarefa séria de investigação, silenciosa, porém eficaz que identifique e retire esses criminosos do convívio do futebol e outros esportes.

Enquanto isso não for feito, não adianta reformar Novo Mangueirão, pois vai continuar sendo um local de exibição da barbárie e da violência como sobremesa indigesta do prato principal que é o futebol.

José Maria Vieira

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA