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Centro antiaborto espalha mentiras com verba pública de deputados de extrema direita

Cervi mantém relações com parlamentares como Damares Alves, Janaína Paschoal e a família Gandra

Via Agência Pública, por Raphaela Ribeiro. Colaboração Bianca Muniz.

Se você é uma das 5 milhões de pessoas que utilizam o metrô da cidade de São Paulo diariamente, é possível que já tenha se deparado com um dos 70 cartazes do Centro de Reestruturação para a Vida (Cervi), afixado nos murais de aviso das estações. Por cima da silhueta do rosto de uma mulher, pintado na cor preta, há a seguinte pergunta em letras vermelhas garrafais: “GRÁVIDA?”. Logo abaixo, aparece uma mensagem ambígua — “Você está confusa ou completamente sozinha… Quais são as suas opções?”—, seguida de um “Ligue para Nós”, dois telefones e o logo da organização. Quem entra em contato pelos telefones no cartaz é convidado a conversar pessoalmente com uma assistente social ou psicóloga, que busca convencer a pessoa a levar a gravidez adiante por meio de promessas de ajuda e informações falsas sobre o procedimento do aborto.

Cartaz do Cervi afixado no mural de informações da estação Sé, na linha vermelha. Foto: Breno Andreata/Agência Pública.

Com atuação em todo o Brasil, a organização foi fundada nos anos 2000 e é ligada à rede americana Pregnancy Resource Center (PRC), conhecida pelas ações voltadas para dissuadir mulheres de abortar. 

Em seu site, o Cervi se descreve como um centro assistencialista, oferecendo atendimento “integral a mulheres e familiares que enfrentam uma gravidez inesperada, vítimas de abuso sexual, violência doméstica ou que tenham passado pela experiência do aborto”. Informa já ter auxiliado mais de 6 mil mulheres, com o total de 18 mil atendimentos até 2020, sem esclarecer, porém, qual foi o tipo de ajuda prestada.

Em paralelo ao trabalho assistencialista, a organização mantém um forte ativismo na luta contra a legalização do aborto. Com uma sucursal em Brasília, bate ponto em reuniões, atos e audiências relacionadas às mulheres e aos direitos reprodutivos, além de se esforçar para captar fundos para a organização. A Agência Pública identificou ao menos R$ 170 mil em emendas parlamentares destinadas ao centro nos últimos quatro anos, sendo que destes R$ 100 mil vieram da Secretaria Nacional de Política para Mulheres, parte do então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos comandado pela hoje senadora Damares Alves.

Relações

Há anos o Cervi vem estreitando relações políticas com figuras da direita e extrema direita brasileira, como a ex-ministra da Mulher Cristiane Britto, a ex-deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB-SP), a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) e a família Gandra. A principal responsável por isso é a presidente do centro, Rosemeire Santiago. Ela chegou a concorrer sem sucesso a deputada federal pelo PRTB-SP na última eleição com o slogan “A Pró-Vida de São Paulo”, com o apoio de Paschoal e do jurista Ives Gandra Martins. Entre as suas pautas estavam a defesa da vida desde a concepção e a aprovação do Estatuto do Nascituro. 

A ex-deputada Janaína Paschoal, que se posiciona publicamente contra a descriminalização do aborto, está entre os parlamentares que destinaram verbas para a organização. Por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social de São Paulo, ela concedeu em 2021 ao Cervi uma emenda parlamentar no valor de R$ 70 mil para “aquisição de equipamentos”, segundo dados do Portal da Transparência estadual.

Em publicação em rede social, Cervi agradece parceria com a ex-deputada Janaína Paschoal. Foto: Reprodução.

Além dela, o ex-deputado Douglas Garcia (Republicanos-SP) propôs, sem sucesso, destinar R$100 mil ao Cervi em 2020, também para aquisição de equipamentos. Alvo de ação contra fake news no Supremo Tribunal Federal (STF), ele é fundador do Movimento Conservador, um dos grupos mais atuantes na direita do estado de São Paulo, contrário a leis de migração, aborto e legalização das drogas.

No site da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) também constam propostas de emenda parlamentar não aprovadas do deputado Gil Diniz (PL-SP), que previa transferência de R$ 138 mil para o Cervi em 2020, e do ex-deputado Carlos Bezerra (PSDB-SP), que pretendia destinar R$ 40 mil ao centro em 2012.

Outros dois nomes que chamam atenção nas relações do Cervi são o jurista Ives Gandra Martins e sua filha Angela Gandra. Os Gandra são militantes antiaborto ligados à organização católica ultraconservadora Opus Dei e são contra o procedimento mesmo nos casos previstos em lei no Brasil, como estupro. Ex-secretária da Família, Gandra foi uma das principais interlocutoras das pautas antiaborto no governo federal durante a gestão de Jair Bolsonaro.

Como representante do Cervi, Rosemeire Santiago esteve em contato com Angela Gandra ao menos em dez ocasiões entre 2019 e 2022. De acordo com a agenda pública da ex-secretária, ela e Santiago se encontraram presencialmente em novembro de 2019, outubro de 2020, fevereiro e junho de 2021 e março de 2022 — os encontros ocorreram no gabinete de Gandra em Brasília e na sede do Cervi, em São Paulo. Elas se encontraram também de forma remota em outras cinco ocasiões, em junho de 2020 e janeiro, fevereiro, março e abril de 2021. Já com o pai, Ives Gandra, houve ao menos dois encontros, um deles no Congresso Nacional de Juristas Católicos, em 2019.

Representante do Cervi se encontrou inúmeras vezes ao longo dos últimos anos com a família Gandra. Foto: Reprodução.

Além dos Gandra, Santiago também afinou relações entre o Cervi e o então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob o comando de Damares Alves –  em seu Instagram pessoal, ela aparece em ao menos dois momentos ao lado da ex-ministra. O objetivo era buscar “novas parcerias com quem defende a vida”, como descrito em uma postagem do centro que registrou o encontro entre a fundadora do centro e Cristiane Britto, à época secretária nacional de Política para Mulheres.

Santiago buscou aproximação com Secretaria Nacional de Política para Mulheres, órgão sob comando do ministério de Damares. Foto: Reprodução.

A aproximação rendeu bons frutos ao Cervi. Foi pela Secretaria Nacional de Política para Mulheres, por meio de emenda parlamentar da advogada e deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ), que o centro recebeu em 2021 R$100 mil de incentivo às suas atividades. De acordo com o Portal da Transparência federal, a verba tinha como objetivo “reestruturar vidas através de capacitação de mulheres com oficinas de enfrentamento e mediação de conflitos, terapia comunitária e geração de renda”. 

Ligada ao grupo católico ultraconservador Centro Dom Bosco – entidade que conseguiu censurar um especial de Natal do grupo de comédia Porta dos Fundos, exibido pela Netflix em 2019 –, Tonietto é uma das parlamentares mais atuantes na defesa da criminalização do aborto.

No Congresso, ela apresentou ao menos 12 projetos de lei sobre o tema, segundo monitoramento do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea) e do projeto Elas no Congresso. A deputada também é uma das interlocutoras da CitizenGO no Brasil, grupo europeu que promove agendas antidireitos, como iniciativas contra o aborto legal e contra pautas LGBTQIA+.

Segundo o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett, que implementou e coordenou por 24 anos o serviço de atendimento à violência sexual e efetivação do aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, o poder público financiar organização antiaborto que promove desinformação é um claro “desvio de função”. 

“O Estado não existe para investir o dinheiro público em uma questão que é de saúde pública e que deveria estar sendo cuidada dentro do Sistema Único de Saúde [SUS] e não está. O estado não deveria tratar isso por meio de uma organização nem para um lado e nem para o outro, nem para induzir mulheres a abortar e nem para criar qualquer constrangimento para que elas não abortem”, afirma. 

Procurados pela Pública, Cristiane Britto, Chris Tonietto, Janaína Paschoal, Ives e Angela Gandra não se posicionaram até a publicação desta reportagem.

Ativismo

Enquanto procura convencer mulheres a não abortar e articula com políticos, a organização participa ativamente de eventos antidireitos. A participação de mais destaque do Cervi ocorreu em 2018, quando a organização foi ouvida durante a audiência pública que discutiu a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. Proposta pelo Psol em 2017, a ADPF defende a descriminalização do aborto voluntário até 12 semanas de gestação. 

Larissa Nadine Rybka, doutora em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo “Aborto, o direito maldito: uma análise sócio-histórica a partir da ADPF 442”, lembra que uma das estratégias mais radicais vistas na audiência ficou a cargo de Santiago. Quando chamada à tribuna, ela deu início a uma encenação na qual um jovem se levantou do lugar que ocupava no plenário e começou a tocar violino. Santiago o interrompeu e iniciou, então, a sua fala, argumentando que o menino não estaria ali se a sua gestação, assim como a sua apresentação, tivesse sido interrompida. 

Segundo Rybka, durante a ADPF Santiago persistiu na narrativa da “salvação” de crianças e jovens através de iniciativas que visam impedir que as mulheres abortem. Em outro momento, afirmou que “por causa do apoio, por causa do abraço, por causa do sentimento sem julgamento, 99% das mulheres atendidas pelo Cervi optaram pela vida”.

Depois de ter comentado a atuação do Cervi, ela questionou a necessidade da descriminalização do aborto em contraponto à falta de “divulgação das consequências” do procedimento, ressaltando a síndrome pós-aborto, não reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia ou pela Sociedade Brasileira de Psiquiatria, devido à falta de evidências científicas e supostas sequelas físicas como “o câncer de mama, esterilidade, a depressão, a drogadição e tantos outros”.

Desinformação como estratégia

Fachada do Cervi, Centro de Reestruturação para a Vida. Foto: Reprodução.

A fim de entender como vem sendo aplicada a verba enviada por parlamentares e pelo então Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos ao Cervi, a reportagem da Pública enviou uma mensagem de apresentação para os telefones expostos nos cartazes do metrô e marcou um atendimento. Uma vez lá, uma assistente social explicou que o Cervi “não é uma clínica de aborto”, mas sim um espaço que acolhe mulheres em situação de vulnerabilidade, que passaram por violência, gravidez inesperada ou aborto, e oferece ajuda com enxoval e cesta básica para mulheres carentes. 

Com um misto de histórias de mulheres que passaram pelo centro e levaram a gravidez adiante, aliadas à desinformação sobre o aborto, a assistente social questiona a reportagem sobre o conhecimento sobre o procedimento. “Tem diversas técnicas e nenhuma delas é segura. Você corre risco de perder seu útero. O risco que você corre não é só do neném, você não vai atingir só o bebezinho, mas seu corpo também é agredido”, afirmou. 

Ainda segundo a assistente social, o aborto, além de muito perigoso, “não é legalizado [no Brasil] nem em casos de estupro”. “Existe uma brecha na lei onde as pessoas conseguem aprovar essa questão”.

A interrupção da gravidez no Brasil, porém, é permitida em casos de violência sexual, risco de vida da mulher gestante ou no caso de o feto ser anencéfalo. É importante ressaltar que o artigo 128, inciso II, do Código Penal prevê que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro, e o termo “estupro” abrange todos os crimes contra a dignidade sexual. 

Durante a conversa, a assistente social ressalta que não está querendo fazer uma lavagem cerebral nem tentando convencer a levar a gestação adiante, mas a todo momento pede maior reflexão sobre a questão. Para a funcionária do Cervi, há uma romantização do aborto — para corroborar a tese, já ao final da conversa, ela pega uma caixa com bonecos de fetos, com o tamanho equivalente a cada semana de gestação, e mostra à reportagem, sinalizando o tamanho do suposto “bebê”.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), lançada no final de março deste ano, uma em cada sete mulheres com idade próxima aos 40 anos já fez pelo menos um aborto no Brasil. Segundo a pesquisa, os dados mostram que o aborto é um evento comum na vida reprodutiva das mulheres brasileiras e reforçam a importância de tratar o tema como uma questão de saúde pública.

Para o ginecologista Drezett, a desinformação pregada por organizações como o Cervi é “propositalmente colocada para infligir ainda mais sofrimento e mais medo às mulheres”. “Fosse com informação correta ou fosse com informação errada, não há nada que justifique o Estado brasileiro financiar uma organização que tem por princípio não ver o aborto com uma questão de saúde pública, mas sim como uma questão de ordem moral religiosa onde você tem que fazer uma atividade para demover as mulheres de uma intenção que elas têm que não pertence àquela organização e não pertence ao Estado”, ressalta. 

A Pública procurou o Cervi via e-mail. Santiago respondeu a mensagem se dispondo a conversar por telefone. Contudo, não retornou os contatos até a publicação da reportagem.

Made in USA

Rosemeire Santiago, fundadora do Cervi, aderiu a modelo americano de casas pró-vida. Foto: Reprodução.

Criada na década de 1970 pelo movimento pró-vida dos Estados Unidos, a rede americana Pregnancy Resource Center (PRC), que inspirou o surgimento do Cervi no Brasil, espalhou ao longo dos anos mais de 2.300 unidades dos chamados Centros de Gravidez em Crise (CPC, na sigla em inglês) nos EUA e Canadá, além de outros 600 centros em diversos outros países. Os CPCs são conhecidos por ações voltadas para dissuadir mulheres com uma gravidez não planejada de abortarem. Algumas das táticas para atrair mulheres envolvem oferta de testes de gravidez e exames gratuitos. 

A PRC afirma em seu site que “fornece ajuda que salva vidas de uma maneira verdadeiramente transformadora, ajudando mulheres em risco de aborto com o apoio prático e afirmativo de que precisam para escolher a vida e, em seguida, prepará-las para serem mães ou para adoção”. Contudo, investigação da organização openDemocracy mostra que muitos desses centros se passam por clínicas de aborto, enganando mulheres e as atraindo para os CPCs. Ao chegarem lá, elas são dissuadidas de não interromper a gestação. Entre as táticas usadas para tal estão: uso de imagens de fetos supostamente abortados e fornecimento de informações falsas sobre o grau de desenvolvimento do feto e sobre os riscos associados ao aborto — tática também utilizada pelo Cervi. 

O PRC foi o responsável também por cunhar o termo “síndrome pós-aborto”, que alega falsamente que o aborto tem consequências negativas para a saúde física e mental, como depressão, ansiedade, baixa autoestima e perda de fertilidade. 

A maioria dos CPCs tem vínculo religioso e é ligada a grandes redes cristãs evangélicas, como Heartbeat International e CareNet. 

Relatório de atividades disponível no site do Cervi afirma que em julho de 1999 Santiago recebeu diretamente um convite do PRC para “juntar-se à causa da defesa da vida da mulher e do bebê”, exportando o modelo americano de casas pró-vida para o Brasil.

Segundo site do Cervi, centro foi fundado a convite do Pregnancy Resource Center (PRC). Foto: Reprodução.

Texto: apublica.org.