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Aos 87 anos, “Boto do Ver-O-Peso”, feirante mais antigo do mercado, teve sete filhos e chora ao falar do grande amor  

Conhecido como “O Boto”, seu Odemir teve uma história bem diferente da lenda que conhecemos: filhos registrados em cartório e um grande amor

Feirante mais antigo do Ver-O-Peso
O Boto do Ver-O-peso
Seu Odemir Barriga Martins ficou conhecido como o “Boto do Ver-O-Peso”

Quem é paraense conhece a famosa lenda do boto, o misterioso ser que habita as águas da Amazônia. Reza a lenda, que a noite o animal se transforma em um belo e atraente homem vestido de branco que seduz e conquista as mulheres e, muitas vezes, as engravida. Sabe-se hoje que a lenda foi bastante usada para justificar o abandono paterno, sobretudo nas cidades do interior do Pará. Homens que engravidavam meninas e desapareciam, deixando a mítica responder por suas ações. Bem diferente do personagem das lendas Amazônicas, o “boto do Ver-O-Peso”, casou, teve com sua esposa sete filhos (nunca fugiu) e ainda pode ser visto no mercado aos 87 anos.   

O nome dele é Odemir Barriga da Silva e embora já tenha trabalhado o bastante para descansar em casa, não abre mão de se vestir de branco (puríssimo), como se suas roupas tivessem saído direto de uma propaganda de água sanitária, e marca presença quase todo o dia no mercado. Foi o hábito de vestir-se de branco que garantiu a ele o apelido de “Boto do Ver-O-Peso”.

“O Boto do Ver-O-Peso também tem uma forte ligação com a Orixá das águas, Yemanjá

Sobre sempre se vestir de branco existe uma explicação para além da lenda do boto. Umbandista, Seu Odemir diz ser protegido pelo caboclo Urubatan, além de  filho de Xangô, portanto, vestir-se de branco, também é parte da ritualística religiosa da qual ele não abre mão.

Seu Odemir chegou de Vigia para trabalhar no Ver-O-Peso. O ano ele não se lembra ao certo, mas sabe que era “novo ainda, menos de vinte”, segundo ele. “Eu venho quase todo o dia porque eu gosto do Ver-O-Peso. O Ver-O-Peso é minha casa, a minha casa eu visito”, diz o feirante que não esconde seu amor pelo cartão postal da cidade de Belém.   

Conhecido como "O Boto do Ver-O-Peso" Seu Odemir Barriga é o feirante mais antigo do mercado
Mercado do Ver-o-Peso provavelmente na década de 50. Imagem reprodução internet

Quando novo, o Boto se virava para conseguir manter-se no dia-a-dia de um dos maiores mercados a céu aberto do mundo. Fazia todo tipo de serviços, carregava caixas, até ter a ideia empreendedora de usar um sótão para guardar as mercadorias que chegavam à noite e não tinham onde ser armazenadas para o dia seguinte. “Eu dormia aqui no Ver-O-Peso, em cima de caixa, de fruta, a Ceasa não despachava a noite, aí eu fiz um sótão aqui em cima e comecei a cobrar para guardar volume, era um cruzeiro”, afirma ele lembrando a moeda corrente da época. 

O Boto com duas de suas filhas na loja de artigos de umbanda da família, que fica no complexo do Ver-O-Peso

Se formos seguir a lenda, falar de boto é falar de histórias de paixão fugazes. Mas bem diferente das narrativas lendárias, Seu Odemir não abandonou nenhum dos sete filhos que teve com a esposa, sendo o xodó das cinco filhas mulheres, como podemos observar facilmente ao observar a dinâmica dele, na loja de artigos de umbanda, onde trabalha com a parte feminina da sua prole.

Quando perguntado sobre o casamento, uma das filhas explicou a relação do pai com a mãe. “Meu avô era português legítimo, e minha avó era indígena, negra, e ele só tinha a mamãe (filha única). E meu avô admirava ele porque ele era trabalhador e escolheu ele pra casar com ela. Quando viu minha mãe, ele se apaixonou. Virou o boto apaixonado” disse a filha Jocelina.

A esposa falecida há 26 anos, mãe de seus sete filhos, que chamava-se Maria Martins da Silva, conhecida como Dona Ninita, morreu depois das complicações de uma cirurgia de apêndice. “Sabe onde ele dormiu? Dois meses em cima do catatumba dela, tomava cachaça e ficava lá no cemitério”. Conta a Jocelina, segunda filha do boto com Dona Ninita, enquanto o pai não consegue segurar as lágrimas de emoção ao falar da mulher que ele diz ser o grande amor de sua vida. “A gente nunca pode esquecer alguém que te tratou tão bem, a minha mulher sempre me respeitou”, afirma o boto. 

Mesmo apaixonado, Seu Odemir assumiu que teve casos extraconjugais. “Eu sempre me preocupei em não fazer filho fora do casamento, vivendo no Ver-O-Peso a gente tem contato com muita coisa, e eu sempre entendia que o cara que arranja filho fora cria problemas para a família. Então eu preferia dar minhas quedas de asa, mas eu já saia fora”, disse ele. 

Quando perguntado qual desejo ele tem para sua vida, agora no alto dos seus 87 anos, seu Odemir nem titubeia em dizer que está pronto para o chamado. “Meu desejo é estar à disposição do Ser Supremo, ele já me deu o passaporte, mas não me deu o visto pra viajar mas a hora que quiser me levar estão à disposição”, brinca.