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Entidades jurídicas católicas atuam em rede para barrar o aborto no Brasil, diz pesquisa

Pesquisa do ISER mapeou ao menos 19 entidades católicas que fazem ativismo antiaborto nos tribunais e Casas Legislativas

Via Agência Pública, por  Nathallia Fonseca.

“A natureza demonstra que a mulher não é mais dona do seu corpo quando a criança é concebida”. O trecho, extraído de um texto amparado na Bíblia e publicado em 2018, na revista especializada Conceito Jurídico, pelo jurista e professor Ives Gandra Martins, é amplamente reproduzido no campo jurídico conservador. Gandra é fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), uma instituição que realiza palestras, cursos e fomenta publicações sob uma perspectiva religiosa. O IBDR tem atuado em rede com pelo menos outras 19 associações jurídicas católicas, em atividade no Brasil, para impedir a descriminalização do aborto.

A afirmação é feita no estudo inédito “Cartografia dos Catolicismos Jurídicos”, ao qual a Agência Pública teve acesso com exclusividade. O levantamento é realizado por um grupo de trabalho do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que observa a relevância da Igreja e de atores católicos na consolidação do conservadorismo no Brasil. 

Essas instituições atuam nos tribunais, e para além deles, com articulações que passam tanto pela atuação legislativa quanto pela incidência no Congresso Nacional. A pesquisa também localizou conexões dessas redes que se estendem a instâncias educacionais e parcerias com organizações sociais.

Um exemplo prático é a atuação em pautas que propõem avanços para o aborto legal no Brasil, como a ADPF 442, que discute a descriminalização da interrupção voluntária até o terceiro mês de gestação. Sete dos centros citados no levantamento do ISER peticionaram ingresso como amicus curiae (amigo da Corte) na ADPF 442. A União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP) e Ives Gandra conseguiram ingressar. 

O julgamento da ADPF 442 pode ser retomado em breve no STF, caso a ministra Rosa Weber decida incluir a pauta antes de deixar o cargo, em outubro. No fim de agosto, 20 entidades cristãs, entre elas centros jurídicos católicos, como o IBDR; o Instituto Ives Gandra; a União dos Juristas Católicos da Arquidiocese de Goiânia; assinaram conjuntamente uma carta aberta ao STF, com pedido de providências ao Congresso Nacional, onde dizem ser “cientificamente comprovado que a vida se inicia no momento da fecundação.” O documento ainda diz que “o STF entrar no mérito da ADPF significaria, para a Suprema Corte, assumir a posição de legislador, a fim de descriminalizar um ato contra o maior bem de todos que é a vida, claramente protegida pela Constituição Federal”. 

Em 2022, quando uma menina de 11 anos em Santa Catarina enfrentou entraves jurídicos para a realização de um aborto legal, após sofrer violência sexual, sete entidades católicas citadas na pesquisa do ISER assinaram juntas uma nota na qual criticam a “pressão midiática” que deu visibilidade ao caso. 

Este ano, quatro uniões católicas voltaram a se reunir para a publicação de uma “nota conjunta em defesa da vida”, na qual repudiam “recentes iniciativas do Governo Federal, por meio do Ministério da Saúde, quanto à flexibilização do aborto”. O documento refere-se à desvinculação do Estado Brasileiro da declaração do Consenso de Genebra, um documento assinado por vários países, promovido no governo Trump, e que é contrário ao aborto. O Brasil fez parte da iniciativa no governo Bolsonaro. 

Segundo as pesquisadoras Ana Carolina Marsicano e Tabata Tesser, do ISER, as entidades jurídicas católicas mapeadas agem em grupo contra o avanço de uma agenda de direitos, oferecendo assessoramento e dialogando com atores do campo político. “Elas também participam de instâncias de poder”, diz Ana Carolina Marsicano. “As organizações mapeadas têm como membros juízes, advogados, integrantes do Ministério Público e políticos”, completa.

Um exemplo dessa participação é a União Brasileira dos Juristas Católicos (UBRAJUC), liderada pela deputada federal e presidente da Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto na Câmara, Chris Tonietto (PL-RJ), uma das principais ativistas antiaborto do Congresso Nacional e autora da PL 434/21, um dos projetos que busca a aprovação do Estatuto do Nascituro. 

Chris Tonietto é advogada e uma das principais lideranças antiaborto no Congresso. Ela apresentou ao menos nove projetos de lei sobre o tema entre 2019 e 2020, seus primeiros anos de mandato, segundo levantamento do Cfêmea. Ela é também uma das fundadoras do grupo católico ultraconservador Centro Dom Bosco (CDB), que conseguiu censurar o especial de Natal do grupo de comédia Porta dos Fundos, em 2019, que representava Jesus como homossexual. O programa foi exibido no Netflix.

No dia 10 de agosto, um seminário na Câmara dos Deputados, organizado pela deputada conservadora católica, que também é advogada e presidente da União de Juristas Católicos do Brasil, discutiu a ADPF 442. O título do encontro foi “competência do Legislativo e ativismo judiciário”. Entre os expositores estava o jurista Ives Gandra, um dos membros da Opus Dei, entidade católica ultraconservadora. 

Gandra é um dos principais atores do conservadorismo no meio jurídico brasileiro. Ele também é membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), que tem em seu estatuto a “defesa da vida desde a concepção” e o estudo do “direito natural”. A filha dele, a jurista Angela Gandra e ex-secretária Nacional da Família do governo Bolsonaro, também estava entre os expositores. 

Ativismo antiaborto 

Em manifestações de rua como as Marchas Pela Vida, articuladas pelo Movimento Brasil Sem Aborto, do qual a ex-ministra do governo Bolsonaro, a senadora Damares Alves (Republicanos) foi uma das lideranças, a presença e engajamento dos principais atores antiaborto do Brasil frequntemente envolve católicos e evangélicos.

Angela Gandra participou da Marcha Pela Vida enquanto era secretária Nacional da Família do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Desde 2019, a UJUCASP realiza o congresso nacional de juristas católicos, que está na terceira edição. Com uma mesa de palestrantes que discute, além do aborto, assuntos como “ideologia de gênero” e ensino religioso nas escolas, alguns nomes são recorrentes: o jurista Ives Gandra Martins, ao lado dos dois filhos, Angela Gandra e Ives Gandra Filho. 

A família Gandra, de São Paulo, é uma das mais atuantes no campo jurídico conservador. Além de fundador do IBDR e da UJUCASP, Gandra Filho é ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Em 2020, ele chegou a ser apontado como um dos favoritos à indicação de Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal. 

Angela Gandra, à época secretária nacional da Família.

Já Angela Gandra, que atualmente integra a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp) ao mesmo tempo em que pertence à Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Durante sua participação no governo Federal, Angela Gandra formou, junto com Damares, a principal interlocução antiaborto no Executivo. 

Em 2020, Angela Gandra viajou à Polônia, durante um momento crítico da pandemia de Covid-19, a convite de uma instituição conservadora local, a Ordo Iuris. O objetivo era palestrar contra o aborto e representar o Brasil no momento em que o país europeu aumentava restrições ao aborto legal. Dois anos depois, participou da decisão que endureceu a legislação sobre aborto nos Estados Unidos ao ingressar como um dos amicus curiae consultados pela Suprema Corte. 

Outros quatro nomes que participaram do governo Bolsonaro também são membros ativos do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) de Ives Gandra: Marcel Edvar Simões, que coordenou um Grupo de Trabalho dentro do então Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), liderado por Damares Alves; Natamy Bossoni, que foi coordenadora-geral em educação e Direitos Humanos; Cândido Barreto Neto, coordenador-geral de Combate ao Trabalho Escravo e Warton de Oliveira, empossado como secretário executivo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). 

Apesar da forte ação católica, pauta do antiaborto é uma das agendas que protagonizam união entre católicos e evangélicos conservadores na política. Dessa articulação, surgem entidades como o Associação de Direito da Família e Sucessões (ADFAS), da qual participaram nomes comuns na educação e na mídia, como a jurista católica Regina Beatriz Tavares da Silva, que também compõe a Diretoria de Relações Institucionais da União dos Juristas Católicos de São Paulo. 

As entidades e pessoas citadas na reportagem não responderam os questionamentos da reportagem até a publicação. As pesquisadoras do ISER pretendem disponibilizar o mapeamento de entidades e atores jurídicos católicos conservadores brasileiros em uma plataforma aberta, como segunda etapa da pesquisa. Elas também pretendem aprofundar o mapeamento dentro dos próprios processos judiciais que se encaixam “em uma estratégia internacional de transnacionalidade deste associativismo jurídico”.