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Seca severa na Amazônia alerta para possível colapso da floresta, diz climatologista

Foto: Foto: Gustavo Basso/DW

A seca deste ano na Amazônia criou um cenário de terra arrasada. Com os rios em níveis baixos históricos, comunidades inteiras isoladas e com difícil acesso a alimentos e água potável. O tempo seco contribuiu ainda para a proteção das queimadas, que destroem florestas e plantações e poluem o ar.

O aumento de períodos severos de estiagem na Amazônia acendeu um alerta sobre o presente e o futuro da região. A comunidade científica alerta que as mudanças climáticas e o desmatamento podem levar à morte da floresta. Esse processo de manipulação geraria enormes emissões de carbono, desregularia o sistema de chuvas no continente e causaria a extinção de centenas de espécies endêmicas do bioma. 

Em entrevista à DW, Carlos Nobre, climatologista do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e referência mundial em estudos sobre mudanças climáticas, falou sobre a atual seca na região, o possível colapso irreversível da floresta e como reverter esse processo.

Seus estudos indicam que a Amazônia pode perder suas características de floresta tropical úmida e virar um bioma desértico, semelhante ao Cerrado, passando pela chamada “savanização”. Como ocorreria esse processo?

Carlos Nobre : ​​Correria pelo fato de que o clima na Amazônia está mudando. Em primeiro lugar, temos o aquecimento global, que induz uma estação seca muito longa em uma parte muito grande da Amazônia. Junto com isso, há também o desmatamento. A pastagem recicla muito menos água do que a floresta. A estação seca já é quatro a cinco semanas mais longa em todo o sul da Amazônia, que vai do Atlântico até a Bolívia, quatro semanas na floresta, e cinco semanas em áreas muito desmatadas.

O início da estação chuvosa está sendo atrasado. Antes, no sudeste da Amazônia, começava no fim de setembro, agora está começando no fim de outubro. Toda a estação seca durou de três a quatro meses, agora já são quatro a cinco meses. Quando atinge cinco a seis meses, passa a ser o envelope climático da savana tropical.

Se continuar nesse ritmo, a floresta vai se degradando, vai sendo recuperada por uma vegetação degradada de céu aberto, com muito poucas árvores, muito pouco armazenada de carbono. Não será mais a floresta do céu fechada.

A atual seca já é histórica. Ela pode ser vista como um sintoma desse processo de desertificação?

O aquecimento global está induzindo secas com mais frequência. Tivemos cinco secas na Amazônia em menos de 20 anos: 2005, 2010, 2015 e 2016, 2022 e agora, 2023. A seca deste ano está sendo muito forte, se continuar nesse nível, ela pode até bater o registro da seca registrada em 2015 e 2016.

Essas têm a ver com as características do El Niño no Oceano Pacífico Equatorial. Mas as secas fortes eram raras e agora estão acontecendo com enorme frequência no sul da Amazônia. El Niños mais fortes estão acontecendo. Tudo isso acelera a manipulação da floresta e esse processo de mudança drástica no seu bioma, que pode acontecer se alcançarmos o ponto de não retorno.

Em que estágio nós estamos agora? Se seguirmos nesse ritmo de desmatamento, quando alcançaremos esse limiar crítico?

O desmatamento já está na faixa de 17%. Nos últimos anos, a Amazônia aumentou 1% de desmatamento a cada quatro anos. Seguindo nesse ritmo, atingiu 20% de desmatamento em menos de duas décadas. De acordo com os últimos compromissos da COP 27, o aumento da temperatura chegaria de 2,4°C a 2,6°C em 2050. Então, no máximo em 2050 já alcançaríamos o ponto de não retorno. Mas já estamos vendo o aumento da mortalidade e da duração da estação seca agora. Isso já está acontecendo, em todo o sul da Amazônia.

Temos como reverter esse quadro de desertificação?

Alguns cientistas até dizem que o sudeste da Amazônia já atingiu o não retorno, nessa região em que a mortalidade de árvores aumentadas e a floresta virou uma fonte de carbono. Mas vários cientistas como eu, acho que não. Se conseguirmos zerar o desmatamento, a manipulação, o fogo e criar um grande projeto de restauração florestal em todo o sul da Amazônia, temos como reverter. Uma vez que a floresta secundária se regenera, ela consegue absorver muito carbono, baixar a temperatura e reciclar de forma muito eficiente a água, impedindo a chegada do não retorno.

A manipulação extrema na parte sul pode comprometer outras regiões da Amazônia?

Comprometa-se com as outras partes, porque toda a floresta ali está reciclando muito menos água. Então os ventos transportam menos vapor d’água para o oeste da Amazônia, por exemplo, que vai ficar mais vulnerável e também pode se degradar.

A Amazônia entrando nesse processo de extremo de manipulação e desertificação, quais seriam as consequências para o resto do país e para o mundo?

A Amazônia presta uma série de serviços ecossistêmicos. Ela armazena uma grande quantidade de carbono no solo e os cálculos indicam que se passarmos do ponto de não retorno, numa faixa de 30 a 50 anos, a região vai liberar cerca de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera. Com isso, ficaria ainda muito mais difícil atingir as metas do Acordo de Paris, a temperatura aumentaria uns 0,3°C a 0,4°C a mais.

A floresta também regula a temperatura da Amazônia, se ela for preservada por esse ecossistema degradado ou por pastagens e pecuária, a temperatura sobe na faixa de dois a três graus, e o vento que passa pela Amazônia e desce para o Cerrado, chegará mais quente, aumentando ainda mais os riscos para esse bioma.

A floresta recicla uma grande quantidade de água. Se passar do ponto no retorno, ela passa a reciclar menos água e a exportar muito menos vapor d’água, que são os chamados rios voadores. Esses rios alimentam sistemas de chuva ao sul da Amazônia, no Cerrado, no centro, no sul do Brasil, centro-leste da Argentina, Uruguai, Paraguai, nos Andes, e até no Sudeste. Além disso, a Amazônia tem a maior biodiversidade do planeta. A savanização afetará imensamente centenas de milhares de espécies endêmicas, só existentes na Amazônia. Eles vão desaparecer. E lógico, isso tem um grande risco ecossistêmico, risco de epidemias e pandemias, por exemplo.

Podemos afirmar que houve um aumento de eventos extremos na região amazônica e eles ficarão mais comuns nos próximos anos?

Esses eventos extremos já são mais comuns. Isso se deve ao fato de que a temperatura até o ano passado tinha aquecido 1,15°C em relação à média da temperatura de 1850 a 1900. No mundo, os meses de junho, julho, agosto e setembro, foram os quatro mais quentes da história, desde que existem registros históricos, e também a partir de dados geológicos que revelam um passado ainda mais distante. Nunca a temperatura esteve tão alta. Com isso, os extremos já ocorrem em todo o planeta e também na Amazônia, como os El Niños mais fortes.

Que soluções você propõe para zerar o desmatamento ilegal e garantir que as pessoas tenham condições de viver na Amazônia com um sustento digno e certa infraestrutura, sem degradar a floresta?

Primeiro, precisamos de uma ação imediata contra o desmatamento em todo o sul da Amazônia, porque está muito próximo do ponto de não retorno. E então zerar o desmatamento em toda a Amazônia até 2030. Esse ano temos a boa notícia de uma enorme redução de desmatamento na Amazônia brasileira, 50% até setembro em relação aos mesmos meses de 2022, prejudicada também na Colômbia, no Peru, no Equador .

Fiz parte da idealização do projeto Arcos da Restauração Florestal, que visa criar talvez um dos maiores projetos de restauração florestal de todo o mundo, e restaurar pelo menos 500 mil km² de floresta, um quarto dos 2 milhões de km² desmatados e degradados em toda a Amazônia.

Por fim, temos que buscar soluções baseadas na natureza. Desenvolver uma nova economia para a Amazônia. Uma economia baseada no conhecimento dos povos originários e comunidades locais, em sistemas agroflorestais, e nos produtos da biodiversidade. Os indígenas conviveram há milhares de anos com a floresta em pé e desenvolveram uma ciência indígena muito importante, temos que aproveitar esse conhecimento.

via dw