É bem provável que a pajelança seja a herança espiritual indígena mais silenciada pelo processo de colonização. Histórias contadas dentro da tradição oral dos povos indígenas foram transformadas em “lendas”, palavra usada pelo colonizador para dizer que essas histórias tradicionais são fictícias. Outras tantas sintetizadas, midiatizadas, perderam sua essência sagrada. Pode ser este o caso da curta metragem “Flor de Mururé”, uma história que envolve um grupo de carimbó, uma briga judicial e, possivelmente, o apagamento da real identidade da doutrina da pajelança. Essa história começa em 2013, mas vamos iniciá-la pelo fato mais recente, no Sesc Ver-O-Peso no último dia 27.
No último sábado de janeiro, o Sesc realizou a exibição Mostra Sesc de Cinema. Dentre os 17 filmes exibidos, um deles foi “Flor de Mururé”, 10 minutos de obra, de autoria de Priscila Cobra e Marcos Corrêa, com produção executiva da produtora Psica. Depois da exibição para o público, Priscila Cobra fez uma fala e alegou perseguição de sua obra. Em seguida, Naraguassú Pureza pediu a fala e reivindicou a apropriação indevida da história da sua vida, uma história que seria sobre a mais pura pajelança marajoara, conhecimento apagado, ao longo da história de dominação dos povos povos tradicionais.
Naraguassú é uma educadora popular, marajoara, ascendente de aruã, indígenas marajoaras dizimados pela colonização. Ela afirma que a história “Flor de Mururé” pertence a sua família e que está sendo usada de forma desvirtuada. “A música Flor de Mururé é um conhecimento ancestral que a mim pertence. Tenho uma obra e não posso usar porque outros já se apropriaram e estão usando. Não é uma narrativa do imaginário amazônico como tentam passar. É uma doutrina de pajelança que em 2013 compartilhei no coletivo vacas profanas. Sem autorização minha fizeram um clipe. Quando fiquei sabendo já estava pronto”, afirma Naraguassú.
“Vacas Profanas”, com quem Naraguassú compartilhou alguns ensinamentos, foi um coletivo feminista formado em 2013, que tempos depois se dissolveu. Lá, Naraguassú contou a história da sua avó, e essa história virou um “rezo” do grupo, uma espécie de cântico sagrado, entoado pelo coletivo, mas com o alerta de Naraguassú de que tratava-se de uma cantoria encantada, que jamais poderia ser compartilhada de forma midiática.
Tempos depois, Naraguassú foi surpreendida com a música, gravada pelo grupo Cobra Venenosa, levada ao grupo por Priscila Cobra, disponível nas plataformas digitais. Em seguida, Naraguassú viu a música se transformar num curta-metragem, com uma narrativa baseada na espiritualidade africana, o que lhe causou imensa revolta. “Peço respeito por mim, que sou guardiã deste conhecimento. Comunico que a música flor de mururé não deve estar vinculada a este clipe, porque nada tem a ver com a história que fizeram” alerta.
Segundo Naraguassú, a pajelança da doutrina da planta Mururé tem 86 ensinamentos que ela recebeu da sua avó. “Em 1500 os brancos europeus transformaram os conhecimentos, a espiritualidade do povo aruã no Marajó em lenda. Agora, em 2021, eu viro lenda também, porque 2013 compartilhei um conhecimento de minha avó com o coletivo, o qual eu convidei para conversar sobre patriarcado na brincadeira de boi-bumbá. Falei da vaquinha encantada e como vovó lutou contra a violência no Marajó. Eu guardo isso por 50 anos. E agora pessoas que não conheço, nunca conviveram comigo, nunca compartilhei nenhum conhecimento, se apropriaram, fazem um clipe que não corresponde o que é a letra da música, porque não conhecem a história da doutrina”, afirma.
Em 2021, Naraguassú procurou o Ministério Público Estadual do Pará e constituiu advogado para buscar o direito à obra e o direito à história de sua avó. No facebook é possível ver a página Vacas Profanas, com a última postagem em 2023. Lá constam postagens da “vaquinha Flor de Mururé” que fazem referência a encantaria de Naraguassú.
Em uma das postagens, o coletivo reconhece o erro de reprodução da música. “Esta sabedoria ancestral deve ser respeitada e reconhecida, bem como seus guardiões. Por isso, Naraguassú se sentiu incomodada com a forma com que a história da música, de sua criação coletiva, mas também da tradição a que se refere e ela própria, foram sendo gradativamente esquecidos no percurso de reprodução da canção. Foi consenso que, até então, a maior parte de nós agiu de maneira desleixada com o conhecimento que nos foi transmitido, revelado, em um espaço de segurança”, afirma a nota do grupo.
Natasha Almeida é doutora em poética no carimbó e comentou na postagem. A pesquisadora refere-se a essa questão emitindo sua preocupação com o conhecimento dos mestres tradicionais. “Como as mulheres e tanto mais as mestras na Amazônia são lesadas com o apagamento e o reducionismo de tudo o que envolve a sensibilidade e a espiritualidade de suas vivências. Poxa, quem é do movimento do Carimbó Pau e Corda sabe o quanto mestres e mestras já tiveram suas composições e trabalhos espoliados por mentes midiatizadas, capitalizadas e patriarcalizadas pela grande mídia ou mesmo por desvio de caráter (vai saber o motivo dessa violência… Marx e Freud explicam…). Como pesquisadora de memórias, preciso dizer aqui que quem empresta, precisa honrar o lugar e a voz de quem empresta”, afirma.
O advogado de Naraguassú, Cristiano Moraes explica que foram feitas comunicações extra-oficiais para Priscila, além de tentativas de acordo, mas não obtiveram sucesso. “Falamos com Priscila para que ela parasse de usar a obra da maneira que está usando, mas não obtivemos resposta. Trata-se de uma herança familiar, da pajelança, da família da Naraguassú, e não de uma obra de domínio público”, afirma ele.
O QUE DIZ PRISCILA COBRA?
O BT estrou em contato com a cantora Priscila Cobra, que afirmou em nota que a música ‘Flor de Mururé’ “começou a ser cantada nas rodas de carimbó nas ruas de Belém desde 2015” e que, por isso e pela “letra potente que fala de vivência LGBTQIA+” a música passou a fazer parte do repertório do grupo Carimbó Cobra Venenosa, grupo fundado por Priscila e Hugo Caetano. A informação é contrária àquela dita por Naraguassu Pureza e o coletivo Vacas Profanas, que afirmam oficialmente em nota divulgada no facebook, que o coletivo começou em 2013 vivenciando o conhecimento da Pajelância “Flor do Mururé – Mano tu sabes o que é ser mulher” e, de junho a setembro de 2013, construíram a música. É em setembro do mesmo ano que os ensaios para os cortejos com a música começaram a ser realizados e foram até junho de 2016.
Ainda em nota, Priscila afirma que em 2021, só após ganhar um edital da lei emergencial Aldir Blanc para realização de obra audiovisual, é que ela procurou saber quem era a autora da letra de ‘Flor de Mururé’. “A partir de então, entramos em contato procurando saber quem seria a autora da música ‘Flor de Mururé’. Maria Eduarda Gama Canto, se reconhece como autora. E temos um termo que ela assina e se reconhece como autora. Portanto, estávamos assegurados para utilização da música tanto no curta-metragem Flor de Mururé, quanto no documentário Filha do Fogo e do Vento”, escreveu. A artista, inclusive, enviou ao BT o documento assinado por Maria Eduarda Canto.
Após isso, Priscila afirma que “começam a aparecer rumores de que a música estaria sendo usada indevidamente”. A nota diz ainda que foi sugerido à Naraguassu Pureza a inclusão de uma foto dela como forma de “fazer parte da obra”. “Priscila também pede fotos de Naraguassu para que ela seja incluída no
curta-metragem, oferece a possibilidade de realizarmos uma gravação com a senhora Naraguassu para que ela faça parte da obra. Nenhuma das opções é aceita por parte de Naraguassu Pureza da Costa.”, afirma a nota que segue fazendo menção à todas as conquistas do curta ‘Flor de Mururé’:
Já Maria Eduarda Gama Canto, apontada por Priscila como autora da música, falou com o BT por telefone. Em entrevista, ela admitiu um erro ao assinar o documento e reforçou que Priscila Cobra sabia que ela não era a autora da letra. “Moro na Bahia há nove anos, eu já não fazia mais parte do coletivo. Fui à Belém e conheci a Priscila, disse para ela que não era autora da música. Depois disso, tiveram muitos acontecimentos que eu não estava envolvida porque não estava em Belém e nem tomei conhecimento. Então, a Priscila veio atrás de mim porque tinha ganhado um projeto e eu dei a minha assinatura. Quando tudo estourou foi que eu soube da grande confusão formada. Eu errei porque ela me pediu a assinatura e eu achei muito bom uma artista preta ganhar um edital de um trabalho massa e eu quis ajudar nisso”, contou. Eduarda disse ainda que acredita em um caminho de judicialização para a resolução do problema. “Eu acho que, judicialmente, é a melhor forma de resolver isso. Eu não tenho medo de arcar com o meu erro”, finalizou.
Pajelança perseguida e invisibilizada
Na tradição da pajelança marajoara, os encantados não são lendas, no sentido de serem fictícias. São entidades vivas e suas histórias são repassadas aos humanos que devem ser responsáveis pelas histórias e transmiti-las só quando sentirem a necessidade, desde que de modo sagrado. No final do século XIX a pajelança passou a ser sistematicamente perseguida pela polícia e considerada crime. Jornais registravam perseguição ao que era considerado como um problema social. Os pajés recorriam aos encantados na tentativa de resolver seus problemas com rituais espirituais e substâncias da botânica regional.
Segundo o pesquisador Thiago Lima dos Santos, da UFMA, a origem da pajelança é atribuída aos rituais xamânicos indígenas na região entre o Maranhão e o Pará. Claude d’Abbeville, missionário francês, falou sobre rituais indígenas a partir de seu contato com as populações nativas em 1612. Em um dos seus registros, ele afirma que os pajés eram embusteiros. “Estes curandeiros, convém saber, são embusteiros de que se serve o Diabo para ter os Índios sempre supersticiosos. São muito estimados pelos bárbaros, que neles muito creem. Dão-lhes o nome de Pagés. Predizem a fertilidade e a secura da terra, e prometem muitas chuvas e todos os bens, e fizeram persuadir ao povo que quando soprem num lugar doente, desaparece a dor, e por isso quando adoecem os Índios são eles procurados”, afirma Abbeville.
O curta-metragem “Flor de Mururé” segue sendo exibido em feiras e sessões. A última exibição do Sesc, gerou revolta em Naraguassú, e traz à tona o silenciamento e o apagamento da doutrina de pajelança marajoara. Quantas histórias de pajelança você já ouviu contadas como lendas, que na verdade, são ensinamentos sagrados transgeracionais, que se apagaram enquanto sabedoria?