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Organização do Marajó e especialistas criticam abordagem nas redes sociais: “Colocaram como bode expiatório”

Depois que a artista paraense Aymeê Rocha fez uma canção criticando a exploração infantil na Ilha do Marajó, páginas de fofoca e influenciadores de todo Brasil replicaram a música com frases do tipo: “Pesquise sobre o Marajó”, com foco para a realidade de abusos e crimes praticados com crianças da região.

Nesta quinta, 22, o Observatório do Marajó, que é uma organização da sociedade civil com a missão de fortalecer e atuar em defesa de lideranças de comunidades tradicionais, ribeirinhas e quilombolas do Marajó, divulgou uma nota pública onde ressalta que as pessoas não devem acreditar cegamente em tudo o que se vê na internet.

“Redes criminosas de exploração sexual de crianças e adolescentes e de tráfico internacional de pessoas, órgãos, animais, madeira, biotecnologia/pirataria e substâncias ilícitas operam no Marajó, na Amazônia e em todas as regiões do país. Elas agem se disfarçando e ocupando instituições e cargos públicos, redes sociais, igrejas, veículos de comunicação e outros espaços onde possam manipular a atenção das pessoas enquanto continuam agindo e operando seus crimes”, explica.

O observatório pontua que a propaganda que associa a exploração sexual infantil ao Marajó não é verdade.

“A população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara. Para proteger as crianças da violência, o caminho é o fortalecimento do sistema de proteção e garantia de direitos das crianças e dos adolescentes, como as escolas e os conselhos tutelares. Enquanto ministra de Estado, Damares Alves não destinou os recursos milionários que por diversas vezes prometeu para a região, para fortalecer comunidades escolares. Ao invés disso, atentou contra a honra da população diversas vezes, espalhando mentiras, e abriu tais políticas públicas para grupos privados de São Paulo que defendem a privatização da educação pública”, explana o Observatório.

Segundo o Observatório, no primeiro semestre do Governo Lula, práticas concretas foram anunciadas e tomadas: como doação de equipamentos e veículos, formações e treinamentos, articulação com o governo do Estado do Pará para fortalecimento da rede de proteção à criança na região, entre outras políticas e ações, mas muito ainda precisa ser feito.

“Muito precisa ser feito para garantir dignidade às crianças marajoaras e brasileiras em todos os estados. Em todos os níveis, e de sul a norte do país, precisamos de políticas públicas baseadas em evidências, boas práticas, saberes tradicionais, valores do bem viver – não mentiras, distorções, manipulações, pânico moral, racismo, nem de qualquer outra forma de violência. Redes criminosas de exploração sexual de crianças e adolescentes impulsionam mobilizações que chamam atenção para regiões com precariedades institucionais, como um apito para chamar criminosos para esses espaços. Não espalhe mentiras sobre o Marajó nas redes e nem caia em desinformação e pânico moral”, adverte a organização.

Por fim, a nota também pede um comprtamento mais ativo e crítico do público, como fazer pesquisas para entender e conhecer mais do Marajó e apoiar organizações e movimentos da localidade.

Nota pública divulgada pelo Observatório. Imagem reprodução.

MORADORES ESTÃO INSATISFEITOS COM A ABORDAGEM

De acordo como professor e pesquisador Aiala Colares, o povo marajoara está insatisfeito com a abordagem da questão nas redes sociais.

“A minha preocupação é ao sensacionalismo que estão dando ao Marajó como bode expiatório, porque não é bem como estão colocando, não é assim. Se tu perguntar para as pessoas que moram no Marajó e conhecem a realidade, eles estão insatisfeitos com essa abordagem que a gente está vendo nas redes sociais. Porque isso deu margem para o fundamentalismo religioso, onde a região tem grande número de igrejas e espaços religiosos por lá. Fora que o Marajó não uma coisa só, é uma região com 16 municípios, um arquipélago de Ilhas, em que qualquer viagem não é rápida, é longa por conta das distâncias, é pelo rio. Onde o poder público atua de forma precária porque até mesmo a possibilidade de implementar algo mais consolidado enfrenta dificuldades por conta da dinâmica da natureza. Parte dos prefeitos, vereadores e políticos da região não têm uma formação adequada com a realidade da população, é como a gente vê em regiões do nordeste, nas beiras de estradas, ou seja, esse problema acontece em todas as regiões do Brasil que enfrentam desigualdades, até mesmo aquelas que tem IDH melhor. A gente não pode colocar o Marajó como o pior lugar do mundo porque não é, a população do Marajó vai discordar. O ribeirinho, por exemplo, não passa necessidade porque ele pesca o camarão, pesca o peixe, ele bate o açaí dele, prepara o miriti, passa por dificuldades na seca, que atinge a produção do açaí, na pesca do peixe, do camarão. Ou seja, estão colocando o Marajó numa posição negativa por conta desse tema porque algumas pessoas vão ganhar like e seguidores falando do Marajó. Agora todo mundo quer salvar o Marajó. É muito mais complexo do que a música e influenciadores falam”, avalia.

Aiala continua sua crítica sobre a repercussão na Web:

“É óbvio que nós temos que considerar, por exemplo, que das regiões da Amazônia, que é uma região que já apresenta uma diversidade, o Marajó apresenta IDHs baixos, índices de desenvolvimento da educação básica baixíssima, porque a gente tem que considerar vários aspectos, um deles é a questão da diversidade da natureza mesmo, dos municípios que compõem esse arquipélago formado por 16 municípios, que ficam distantes uns dos outros. Tem toda uma dificuldade em termos de integração, de conexão, de acesso ao serviço público, de acesso ao serviço de segurança pública, de acesso à energia elétrica, à internet, e, de certa forma também, claro que essa precarização que envolve a infraestrutura, ela dificulta a fixação de profissionais. Então, existe um histórico de desigualdade que é reproduzido por uma lógica de economia de mercado que trabalha por uma perspectiva de exploração e que colocou essa região no patamar de desigualdade como outras do Brasil, no interior do Nordeste, no interior do Sudeste, nas regiões periféricas das cidades brasileiras, enfim. Ou seja, Locais que tu vai encontrar problemas relacionados ao narcotráfico, ao tráfico de pessoas, à exploração sexual, à violência contra mulheres. Temas que agora apareceram colocando o Marajó como uma espécie de referência. Então, isso por aí já me deixa preocupado, porque colocam o Marajó na condição de bode expiatório para um problema que é geral”, adverte Aiala Colares.

Para o pesquisador, o principal ponto de destaque é que o problema não é apenas realidade no Marajó, mas em diversas partes do Brasil.

“Todos esses problemas de fato fazem parte da realidade do Marajó, mas não só do Marajó. Você vai encontrar isso no baixo do Tocantins, na região do interior do Amazonas, no interior do estado do Maranhão, do Piauí, do Ceará. Tu vai encontrar isso nas periferias e favelas, por exemplo, do Rio de Janeiro, São Paulo. É um problema que assola a sociedade brasileira em geral. Esse é um ponto que a gente tem que destacar. A outra questão é o fato de que alguém acabou sugerindo que o Marajó seria um dos piores lugares do mundo para se viver, é extremamente equivocada essa fala. Porque o Marajó é uma região que compõe esse conjunto de municípios que eu citei, 16, onde as comunidades ribeirinhas elas dependem da relação com a natureza, do extativismo do açaí, da coleta do miriti, da pesca. As habitações das comunidades ribeirinhas, de madeira, em forma de palafita e estivas, elas repercutem uma identidade cultural amazônida que, para eles, ela está associada ao bem-viver, porque é uma questão cultural. Ou seja, eu não preciso ter um shopping no Marajó, nem um condomínio fechado no Marajó”, afirma.

“Eu preciso ter no Marajó condições para que essa extração dos recursos naturais continue a acontecer. De forma que a única maneira de conseguir isso é através do combate ao aquecimento global, pois, no ano passado, a produção de pescado de camarão foi comprometida pela estiagem pela seca na região amazônica, comprometendo a subsistência das comunidades”, salienta.

Segundo Colares, o comércio do açaí também está impactando o consumo das cidades do Marajó, as empresas estão cobrando na fonte dos ribeirinhos, diminuindo, por exemplo, a oferta de açaí nas cidades. O que transforma um problema que carece explicações.

“Tirando como exemplo o açaí, a utilização do futo, criando impacto no consumo, bem como o aquecimento global, criando impacto na segurança alimentar do Marajó. Assim, você vai ter um cenário de fome, de caos”, avalia.

VÍDEO DETURPADO

Aiala também critica que em quase todas as abordagens nas redes sociais sobre exploração infantil na Ilha do Marajó, os vídeos usados estão em um recorte prejuducial e deturpado.

“Pegaram um vídeo deturpado de uma imagem que mostra as crianças no barco, e aquilo não significa que as crianças estão indo se prostituir no barco. É óbvio que existe fração sexual no Marajó, mas existe aqui na periferia de Belém, no Rio de Janeiro. É óbvio que existe um problema maior lá em relação ao acesso, mas há 20 anos atrás já vinha sendo denunciado. E como eu vou ressaltar aqui, na Amazônia, os três estados onde mais acontece tráfico de pessoas, estão entre o Amazonas, depois o Maranhão, e o Pará. Nossa pesquisa levantou isso, do Cartografismo da Violência na Amazônia, apresentava esses dados. E esse tráfico de pessoas está direcionado para regiões de garimpo, tendo Breves como grande ponto de articulação que vai para a Guiana Francesa, para o Suriname, e para a região de garimpo do estado do Amapá. É muito comum, como tem um tráfego que sai do Maranhão, do interior, do Piauí, que vai em direção à Jacareacanga e Itaituba, mas como também tem um tráfego que sai do interior do Amazonas, enfim”, delimita.

“E, assim, é uma dinâmica de desigualdade e de exploração sexual que envolve a atividade mineradora, o garimpo ilegal. Infelizmente, construída com a cultura de desenvolvimento da região amazônica, desde Serra Pelada, e até hoje se continua. E aí, Breves, se torna essa capital do Marajó, com essa articulação em nível intra-regional do fluxo de pessoas que vão para a região do garimpo. E dentro do Marajó, claro, que existe essa exploração sexual infantil, e não prostituição infantil, de famílias carentes mesmo que acabam levando, mas acontece isso também no interior do Nordeste. Então essa é a minha preocupação. Ou seja, o Marajó não é só desgraça, não é só pobreza”, finaliza Colares.

O BT Amazônia também ouviu a avaliação da professora e doutora, Jacqueline Guimarães, que coordena o Programa Direitos Humanos, Infâncias e Diversidade no Arquipélago do Marajó, no Campus Universitário do Marajó/Breves, da Universidade Federal do Pará. Para ela, O Marajó é um arquipélago com complexidades particulares, mas que parte da mídia insiste em abordar como de forma negativa através da exploração infantil.

“Existe sim o abusos sexuais de crianças no Marajó, mas tais casos precisam tomar como comparação e análises os dados nacionais. Infelizmente, o abuso e exploração sexual de crianças não é uma exclusividade do Marajó, que é um arquipélago de 17 municípios e não uma simples e única “ilha” como é propagado na mídia. E acontecem justamente por termos uma Rede de Proteção que é desprotegida, sem recursos financeiros, que não conseguem chegar a locais mais distantes como comunidades ribeirinhas que ficam até 12h distante dos centros das cidades, por exemplo”, pondera.

Sobre a hipótese de que muitas crianças no arquipélago não possuem registro de identificação, Jacqueline salienta que não há dados concretos quanto à falta de registros.

Outra suposição levantada é a de que as lendas populares da região amazônica seriam um artifício usado para as práticas de crimes contra as crianças marajoaras. Neste ponto, a pesquisadora avalia como desrespeitoso levantar tal premissa.

“Isso é um absurdo completo, fazer essa associação de algo que é do folclore da Amazônia e da região Norte é mais uma vez um indicativo do quanto nós somos apagados, silenciados dentro da perspectiva nacional, na forma as pessoas de sul, sudeste, nos enxergam. E querer utilizar essa premissa chegar a ser xenofóbico a indicação de uma lenda que é parte da Amazônia enquanto uma justificativa para casos que são resultado de uma conjuntura de desiguladade econômica, social e territorial que faz com que as nossas regiões não sejam percebidas no processo de planejamento de políticas públicas, porque mais uma vez opera a lógica do centro do país. Por isso é um absurdo, porque ninguém quer entender nem compreender como é ser um assistente social, um conselheiro tutelar, um professor, um pedagogo, em uma região que é penalizada pela má distribuição de renda em que profissionais não conseguem receber seus salários. Uma região que carece de concurso público, porque se estamos falando da proteção de crianças e adolescentes, temos que perceber a importância da rede de proteção ser fortalecida dentro da perspectiva financeira e de planejamento para garantir a atuação efetiva dos profissionais. É comum eu ver profissionais que atuam na rede de proteção à infância dizerem que não tem nem gasolina para atender as comunidades mais afastadas, para utilizar uma lancha, fazer um visita domiciliar. Isso é conjuntural e faz parte de uma perspectiva estrutural de como falta organização no nosso país para planejar políticas públicas. Se utilizar de algo que é folclórico chega a ser desrespeitoso”, critica a doutora.

Ao finalizar sua avaliação, a professora Jacqueline levanta a reflexão sobre qual é a justificativa para que falas sem embasamento e sem dados concretos são direcionadas ao Marajó.

“É importante que, acima de tudo, se reflita sobre o porquê essas narrativas sem qualquer apresentação de dados estatísticos concretos sempre são direcionadas ao Marajó. É uma região sim penalizada pela pobreza e fragilidade das políticas públicas. Mas o que se tem feito concretamente para o enfrentamento dessa problemática? Quem ganha com essa visibilidade? Quem está sendo mencionado ou quem fala? Esse “Marajó”, que chamam de ilha, fica aonde? É Breves? É Soure? É Melgaço? É muito tranquilo auferir uma narrativa a um lugar que se desconhece e mais fácil ainda é ganhar destaque com isso”, conclui.