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A outra chacina do Vale do Javari – e seus ecos no assassinato de Bruno e Dom

Quase perdido na memória nacional, um massacre de indígenas Korubo em 1989 traz à tona as relações familiares entre os autores dos dois crimes

Foto: Reprodução.

Via Agência Pública, por Rubens Valente.

Atalaia do Norte (AM) — No mesmo trecho e às margens do mesmo rio, o Itaquaí. Entre os autores do crime está um grupo de pescadores de uma comunidade ribeirinha vizinha aos acontecimentos. Que usaram o mesmo tipo de arma com idêntico calibre. E que também enterraram os corpos, na tentativa de apagar as pistas. Mas poucos dias depois os cadáveres foram encontrados, e o morticínio revelado em toda sua extensão.

Muitos paralelos podem ser feitos entre os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, ocorridos no último dia 5 de junho, e uma execução a tiros de três indígenas Korubo, então vivendo em isolamento voluntário no Vale do Javari, ocorrida em setembro de 1989 – uma chacina quase perdida na memória nacional.

Outra ligação está nas relações familiares dos autores dos dois crimes. A Agência Pública localizou a cópia de um registro de identidade que confirma o que é dito por moradores de Atalaia do Norte (AM). Um dos autores da chacina dos indígenas em 1989, o ribeirinho Sebastião “Sabá” Conceição da Costa, nascido em 1941 e já falecido, vinha a ser o sogro de Oseney da Costa de Oliveira, o “Dos Santos”, 41, um dos três presos pelo assassinato de Bruno e Dom e irmão do principal acusado pelo crime, Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, 41.

Assim, “Pelado” é cunhado da filha de “Sabá” e mulher de “Dos Santos”, Raimunda Nonata Oliveira da Costa, 38. Um dos filhos do casal “Dos Santos” e Raimunda, hoje com 21 anos de idade, se chama justamente Sebastião, o nome do seu avô, acusado pela chacina dos Korubo. A viúva de “Sabá”, França, mora ao lado da casa de “Dos Santos” em Atalaia.

O indigenista Fabrício Amorim, amigo de Bruno Pereira, integrante do OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato) e grande conhecedor da trajetória dos Korubo no Vale do Javari, coletou vários documentos que integravam o processo aberto na Justiça para investigar a chacina de 1989.

Os papéis demonstram que os assassinatos só vieram à tona a partir da iniciativa de um padre da Prelazia do Alto Solimões que morou em Atalaia por muitos anos, Joseney Lira do Nascimento, e que depois desempenharia um papel relevante na organização do movimento indígena que culminou na demarcação da Terra Indígena Vale do Javari, em 1996. Numa carta enviada à Funai de Atalaia em outubro de 1989, o padre contou que entre os dias 16 e 19 daquele mês fazia uma visita pastoral a ribeirinhos do rio Itaquaí quando foi informado sobre a chacina, até então comentada à boca pequena na região.

Fiéis contaram ao padre que, no dia 2 de setembro, um grupo de quatro indígenas Korubo “foi visto por um seringueiro na margem direita do Ituí bem próximo ao Itaquaí”. No mesmo dia passaram para o Itaquaí e “quase em frente à casa de Sebastião” acenaram para os moradores da casa. No dia seguinte, os moradores se reuniram “juntamente com um grupo de pescadores que desciam o Itaquaí”, formaram um grupo de “aproximadamente 15 homens armados de espingarda e partiram para cima dos índios”.

Os Korubo não portavam armas de fogo nem arcos e flechas, mas bordunas – uma delas foi recuperada depois, media 1,60 m. Daí serem conhecidos na região como “índios caceteiros”. Pegos desprevenidos, os Korubo não tiveram qualquer chance de reação.

Por volta das 11h00 do dia 3 de setembro, informou o padre, os ribeirinhos assassinaram a tiros três indígenas “na curva da gamboa próximo ao Ituí”. “Ali mesmo fizeram uma só sepultura e enterraram os três índios”, escreveu o padre. Ele acrescentou uma frase que, à luz do caso Bruno-Dom, assassinados por pescadores, hoje adquire maior significado: “Os moradores presentes na reunião ocorrida no dia 18 do corrente na casa do sr. Sebastião Costa foram unânimes em afirmar que o grupo que disparou contra os índios, matando-os, foi o dos pescadores”.

Quando o governo demarcou a Terra Indígena Vale do Javari, em 1996, estabeleceu exatamente a confluência dos rios Itaquaí e Ituí como o limite do território. Esse ponto, o mesmo em que ocorreu a chacina de 1989, se localiza a apenas cerca de 20 minutos de barco rápido até o local onde Bruno e Dom foram surpreendidos e assassinados no dia 5 de junho por “Pelado” e outro acusado, Jeferson Lima. Foi também na confluência dos rios Itaquaí e Ituí que, um dia antes dos assassinatos, “Pelado” exibiu uma espingarda para Bruno e um grupo de indígenas.

O servidor da Funai em Atalaia do Norte Gilmar Figueiredo, para quem o padre dirigiu sua carta, era na época o chefe do órgão indigenista na região. Gilmar, que é filho do lendário sertanista Gilberto Figueiredo, morto por indígenas waimiri-atroari durante a ditadura militar em 1974, disse que a narrativa do religioso foi depois confirmada pela investigação desencadeada pela Funai e pela Polícia Federal, inclusive com as confissões dos principais ribeirinhos investigados.

Gilmar contou que houve um plano para massacrar quatro Korubo, um dos quais escapou com vida. “Pelos depoimentos dos que participaram, eles fizeram duas turmas, uma no mato e outra no rio. Os que estavam no mato chegaram atirando, daí eles [Korubo] correram para a praia. Nisso já tinha outra turma lá [atirando]”, rememorou Gilmar à Agência Pública na sede da Funai em Atalaia no final de junho. Assim, os Korubo foram encurralados.

Sebastião “Sabá”, o principal acusado no processo judicial, foi ouvido pela Polícia Federal de Tabatinga (AM) em fevereiro de 1990. Ele disse que, em outubro, fora procurado pelo padre Joseney e admitira a chacina, numa conversa em sua casa, porque “não gosta de mentira”.

Na sua versão, “Sabá” disse que na noite anterior ao crime estava reunido em sua casa com seus familiares e vizinhos para discutir “o que fazer” sobre a presença dos indígenas nas imediações quando chegou um grupo de pescadores “que tavam pedindo pousada para continuar a viagem no dia seguinte”. “Sabá” disse que os pescadores, ao saberem do que se passava, resolveram atacar os indígenas na manhã seguinte.

No seu depoimento, “Sabá” descreveu o mesmo plano referido por Gilmar à Pública. Uma turma, da qual o ribeirinho fez parte, seguiu pelo mato para expulsar os indígenas em direção ao rio, enquanto a outra foi pelo rio e ficou esperando perto de uma praia.

Pouco tempo depois, “Sabá” ouviu três tiros. Ele correu para a praia, onde encontrou os três corpos. Os pescadores comentaram, segundo o ribeirinho: “Bão, pronto o que nóis viemos fazer aqui, tá feito, vamo imbora”. Na mesma tarde, a fim de evitar a descoberta dos corpos, “Sabá” e amigos foram ao local e enterram os três cadáveres, um ao lado do outro, num único buraco “de mais ou menos um metro de fundura”. Dias depois, o rio subiu e encobriu a cova.

Nascido e criado no mesmo lugar da beira do rio Itaquaí, “Sabá” admitiu que nunca tinha visto nem teve problema anterior com nenhum Korubo, “só tinha ouvido falar”, segundo reconheceu no seu depoimento. Mencionou apenas que “ficou com medo que pudesse acontecer alguma coisa com algum morador dali” e especialmente com sua família, que era “grande”, segundo “Sabá”. Ele contou ser pai de nove filhas e filhos.

Vale do Javari tem histórico de violência contra indígenas. Foto: José Medeiros/Agência Pública.

Em 70 anos, 62 conflitos entre indígenas e não-indígenas

O massacre de 1989 foi um dos vários episódios sangrentos na relação entre indígenas isolados e os ribeirinhos, seringueiros, pescadores, caçadores e madeireiros do Vale do Javari ao longo de décadas.

Em 1996, um relatório do indigenista Rieli Franciscato, considerado uma referência na Funai e morto em 2020 por um indígena isolado em Rondônia, mencionou a ocorrência de “pelo menos 62 conflitos” entre indígenas e não indígenas num período de 70 anos, a partir da década de 1920.

“Nesse contexto hostil e perverso, aguerridos na defesa da terra e de seu povo, os ‘Korubo’ (conhecidos como caceteiros) foram uma das maiores vítimas desse processo brutal de ocupação e de exploração. Ainda nos anos 20, seringueiros peruanos já espalhavam o terror e morte entre esse grupo, sendo que os conflitos acentuaram-se drasticamente a partir da década de 1970 e manteve-se verticalmente até o meado da década passada [1980]”, escreveu Rieli.

Em 1989, após a denúncia do padre Joseney, Gilmar foi com uma equipe da Funai ao rio Itaquaí a fim de tentar localizar os corpos. No ponto indicado pelas testemunhas, uma das quais o próprio “Sabá”, os servidores viram bolhas de ar saindo do rio. Era um indício de que material biológico estava em decomposição submerso na água.

“Sempre houve matança dos índios, e os índios matam os brancos, caçadores, madeireiros. Todas as vezes em que houve massacre, que a Funai sabia, tinha uma equipe [para apurar], e às vezes não constatava nada. Nessa, o padre denunciou, a gente foi até o local, e nesse local estava borbulhando, e o pessoal teve que mergulhar para saber se era indígena ou não, se tinha corpos ou não”, disse Gilmar.

Um dos servidores da Funai que participou da recuperação dos corpos foi João Curina, 62, indígena e servidor há 40 anos, que recebeu a Pública em sua casa em Atalaia. Curina contou que ele e mais dois funcionários da Funai passaram álcool no corpo antes de mergulhar no rio. Gilmar disse que foi graxa, e não álcool. Isso era necessário para evitar que os peixes, que devoravam os corpos em cardumes, também acabassem atacando os mergulhadores.

“Era para candiru, piranha, não perturbar a gente.” Curina calcula que os corpos estavam a cerca de cinco metros da superfície. Algumas varas longas foram espetadas no fundo do rio para servir de guia dos mergulhadores.

“Eles [assassinos] eram todos lá do rio, era uma comunidade. Eles cercaram [os índios] por cima. O rio fazia assim [uma curva] e a passagem para o rio era bem estreitinha. Aí os ‘brancos’ vieram por cima para atacar eles de lá”, disse Curina.

João Curina, 62, indígena e servidor da Funai há 40 anos. Foto: José Medeiros/Agência Pública.

Os corpos foram levados à Casa do Índio, em Atalaia, para os exames de necropsia. O laudo datado de novembro de 1989 aponta que um dos indígenas tinha 1,80 m de altura, o segundo, 1,75m, e o terceiro não pôde ser medido porque faltavam partes do corpo. Em dois dos casos, os peritos conseguiram atestar que houve “choque hemorrágico” por “ferida penetrante” na cabeça e no peito provocado por projéteis de arma de fogo.

Após os exames, os corpos foram transportados pela Funai para o enterro no cemitério municipal de Atalaia do Norte. Os corpos foram colocados em caixões fabricados por um servidor da Funai e baixados numa cova única à esquerda da entrada do cemitério.

A pedido da Pública, Gilmar mostrou no cemitério municipal de Atalaia do Norte (AM) o local onde os três indígenas foram enterrados pelo órgão indigenista. Após olhar toda a área, concluiu que a sepultura desapareceu porque provavelmente o mesmo ponto foi usado para outros enterros por cima dos restos mortais dos três Korubo. Foi a mesma explicação dada por um funcionário do cemitério que pediu para não ter o nome publicado. Assim, depois de mortos os Korubo também tiveram eliminados seus últimos vestígios.

Gilmar Figueiredo, servidor da Funai, mostra o local no cemitério de Atalaia do Norte (AM) em que foram enterrados três indígenas Korubo massacrados em 1989. Não há mais vestígios da sepultura. Foto: Rubens Valente/Agência Pública.

Ao final do inquérito aberto na PF, em 1990 o delegado da Polícia Federal Luiz Carlos da Silva indiciou, além de “Sabá”, o madeireiro Raimundo Nonato Santos e os pescadores Valdeci Rios de Souza, José Ribamar Maciel, João Batista Vieira e Luiz Nazaré da Costa, todos residentes às margens dos rios Itaquaí e Ituí. Três dos acusados chegaram a ser presos, mas depois conseguiram o relaxamento das prisões.

Seguiu-se uma longa discussão sobre o foro competente para processar e julgar a ação criminal. Tanto o Ministério Público Estadual quanto o Federal disseram que não cabia a eles atuar no processo, um alegando que o massacre ocorreu “em reserva indígena”, outro dizendo que não. Essa disputa técnica durou quatro anos. Em janeiro de 1994, a juíza substituta da 3ª Vara Federal de Manaus (AM), Maria Lúcia Gomes de Souza, decidiu que o caso era de competência estadual. Seis meses depois, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) confirmou a decisão da juíza e decidiu enviar o caso para a Justiça de Atalaia do Norte.

Passaram-se mais de três anos sem qualquer movimentação do processo – até a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Amazonas perceber, em 1997, que ele estava “paralisado desde setembro de 1995”. O processo voltou a andar. Mas só em 1999, dez anos depois da chacina, ocorreu a primeira audiência judicial com um dos réus. Depois disso, não foi mais possível à Pública localizar o destino do processo. A vara única do fórum de Atalaia não localizou o processo. Procurado na última quarta-feira (3), o Tribunal de Justiça do Amazonas não havia encaminhado, até o fechamento deste texto, uma resposta às dúvidas da Pública sobre o destino do processo. Indígenas, indigenistas, moradores e servidores do fórum de Atalaia ouvidos pela Pública não se recordam de nenhum julgamento sobre os réus nem souberam dizer o desfecho do processo.

“Pelado” cresceu tendo a violência como solução de conflitos

Quando o nome de Amarildo Costa, o “Pelado”, foi revelado nas investigações sobre o assassinato de Bruno e Dom, indigenistas experientes como Sydney Possuelo se surpreenderam com a sua participação, pois ele havia integrado, em 2002, então conhecido como “Menino”, de uma expedição organizada pela Funai para reprimir invasões ao território indígena.

“O que leva um jovem que participou daquela viagem a cometer um assassinato 20 anos depois? Não acompanhei a vida dele”, indagou Possuelo em reportagem do jornal “O Estado de S. Paulo”.

Um olhar mais atento sobre o passado da região, o que deve incluir a chacina de 1989, porém, mostra que o ambiente no qual “Pelado” cresceu e viveu está muito longe de considerar a violência um meio não adequado para solução de conflitos. Pelo contrário, é um ambiente sangrento, como demonstra o destino dos três Korubo mortos friamente a tiros de espingarda na chacina de 1989. Na época, “Pelado” tinha nove anos de idade e não teve qualquer participação no evento. Mas histórias como essa de enfrentamentos violentos entre indígenas e não indígenas seguramente eram contadas e recontadas entre os ribeirinhos do Itaquaí, passando de pai para filho.

O indigenista Fabrício Amorim disse que na região há um histórico de violência. No caso que vitimou Bruno e Dom, “há uma diferença”. “Ao longo de muitas décadas, mais de 40 pessoas morreram nesses conflitos, indígenas foram mortos, também sete servidores da Funai, ribeirinhos. Havia uma guerra estabelecida entre indígenas e não indígenas. Os assassinatos de Bruno e Dom são os primeiros de não indígenas praticados por não indígenas [em torno da proteção das terras indígenas]. É o primeiro caso, num histórico de 40, 50 anos. Isso é um sintoma bem importante do que está acontecendo na região”, disse Amorim.

Jader Marubo, ex-coordenador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), disse à Pública que a descoberta do massacre de 1989 teve uma grande importância para o processo de demarcação da Terra Indígena Vale do Javari. Segundo ele, esses ataques aos indígenas se intensificaram nas décadas de 1970 e 1980 porque os moradores da região não queriam deixar vestígios de que havia indígenas isolados na região. Depois da demarcação, os conflitos do gênero cessaram.

Jader Marubo, ex-coordenador da Univaja. Foto: José Medeiros/Agência Pública.

“Esse massacre deu o play para que a demarcação andasse. Antes ela vinha a passo de tartaruga, após essa morte dos Korubo, o Estado brasileiro viu que tinha a necessidade de demarcar até para proteger o território desses índios isolados. Foram mortos índios isolados, e isso era uma coisa negativa para a imagem do governo porque estava sendo iniciado a redemocratização do Brasil. Foi tipo um ponto chave. Se não tivesse acontecido, quem sabe até hoje a demarcação não teria andado. Foi importante esse ponto da história.”

Texto: apublica.org.