Via Agência Pública, por Bruna Bronoski.
O indígena Turiwara Adenísio dos Santos Portilho deixou Tomé-Açu de carro por volta das 8h junto com três amigos. Eles saíram da aldeia Braço Grande, na Terra Indígena (TI) Turé-Mariquita, localizada no nordeste do Pará. Antes de atravessarem o rio Acará pela balsa, desceram e, a partir desse momento, quem assumiu a direção no lugar de Adenísio foi Clebson Barra Portilho. Minutos depois, Clebson foi atingido na cabeça por uma série de disparos de arma de fogo e morreu no local. O motorista Adenísio era o alvo.
No mesmo ataque, em 24 de setembro passado, Cleozo dos Santos, 35 anos, indígena Turiwara, foi baleado na cabeça e no ombro direito. Ele sobreviveu e hoje convive com sequelas. Já Adenísio foi atingido por cinco tiros nas duas pernas. Apenas um dos ocupantes do carro escapou ileso. Na madrugada após o ataque, a Casa Cultural da Braço Grande foi incendiada. Até agora, ninguém foi preso. A Polícia Federal (PF) apura o caso.
Esse foi o primeiro assassinato de indígenas na região de Tomé-Açu desde a instalação da Brasil BioFuels (BBF), empresa brasileira que produz biocombustíveis a partir do óleo extraído do fruto da palma, o dendê. Desde a chegada da companhia ao local, confrontos entre indígenas e seguranças da empresa, relatos de impedimento de ir e vir e ameaças são quase diários.
A violência e a tensão na região são amplificadas por um terceiro fator: o assédio processual. Apesar de a empresa estampar em sua página na internet que mantém “diálogo contínuo com as aldeias que coabitam as regiões”, documentos e depoimentos apurados pela Pública apontam uma espécie de “cruzada judicial” coordenada pela BBF. Além de processos contra membros de comunidades tradicionais, também são denunciados pela empresa promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e servidores das forças policiais que investigam os conflitos e defendem os direitos das comunidades.
Segundo Emério Costa, um dos promotores de justiça do MPPA que acompanham o caso, isso tem nome no direito: “uso emulativo do processo” ou “assédio correicional”. “Emulação” significa competição, disputa ou concorrência, que, no caso da BBF, ocorre pela quantidade expressiva de ações e denúncias que move a fim de tumultuar o andamento de ações em que a própria empresa é investigada.
Adenísio, que abre esta reportagem, conta que é perseguido por ser uma das vozes contra o avanço do dendê sobre territórios indígenas das etnias Tembé e Turiwara — as plantações de palma da BBF estão sobrepostas a áreas públicas, reivindicadas por comunidades indígenas e quilombolas, como revelado pela Pública em agosto. Por causa das ameaças, ele vive escondido desde 2021. “A nossa questão é de vida ou morte, a gente está pedindo socorro para todos os órgãos. A empresa sabe o que ela vem causando pra nós”, disse por telefone.
Em novembro, uma indígena de 28 anos, dois homens e um menor de idade relataram terem sido espancados por seguranças da BBF em uma estrada rural. A agressão teria ocorrido horas depois de que dezenas de indígenas e quilombolas se reuniram na fazenda Campos Belo, de posse da BBF e intrusa no território indígena, para se manifestar contra uma decisão de reintegração de posse favorável à empresa. A decisão foi suspensa no fim do dia.
A Pública teve acesso a um vídeo em que homens uniformizados com camisa verde clara aparecem em pé, enquanto indígenas estão deitados no chão com as mãos na cabeça e há um espancamento ao fundo. Sobre o caso, a BBF não confirma que a violência teria sido praticada por seus funcionários e afirma que os indígenas “dissimularam e criaram uma cena fantasiosa para que fossem gravados numa tentativa de incriminar à empresa”.
Motivo dos conflitos, as sobreposições das lavouras de dendê nos territórios tradicionais existem desde antes da chegada oficial da BBF, em 2008, e da sua instalação efetiva, em 2020, quando comprou as operações de outra companhia. A antiga proprietária das lavouras de palma era a Biopalma/Vale, um consórcio entre a Biopalma da Amazônia S. A. e a multinacional brasileira Vale. Sob a antiga gestão, o conflito fundiário já atingia 27 mil pessoas, segundo dados do Environmental Justice Atlas. Com a troca das companhias, os conflitos pela terra se acirraram na área rural dos municípios de Acará, com 55 mil habitantes, e de Tomé-Açu, com 64 mil, tanto física quanto judicialmente.
Máquina de denúncias
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) revelam que, durante o ano de 2022, houve nove ocorrências criminosas contra indígenas e quilombolas de Acará e Tomé-Açu envolvendo a BBF. De julho de 2022 para cá, o relatório registra três tentativas de assassinato. O primeiro assassinato que envolve suspeitas do conflito com a empresa, no entanto, ocorreu em setembro, com a morte de Clebson. Perante a Justiça e a polícia, a narrativa da BBF é que a empresa é vítima de ações criminosas das comunidades da região.
O discurso da empresa está em 134 boletins de ocorrência registrados só em 2021 nas delegacias de Polícia Civil de Tomé-Açu e Acará. Apenas entre janeiro e outubro de 2022, foram 154 protocolos, uma média de um boletim registrado a cada dois dias.
“Essa sucessão de boletins de ocorrência contra as lideranças traz indícios de que se trata de uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais na região”, afirma o promotor Costa.
O sistema da Secretaria de Segurança Pública do Pará não registra se os denunciados são de comunidades tradicionais. Mas a própria empresa admite ter protocolado, desde sua instalação na região até agora, mais de 650 boletins de ocorrência contra os vizinhos dessas comunidades.
Entre os crimes apontados pela BBF estão roubo de madeira, tratores e frutos de dendê; ameaça contra motoristas e ônibus da empresa terceirizada que faz o transporte de trabalhadores rurais; invasão de propriedade e incêndio criminoso.
As lideranças indígenas têm seus nomes entre os mais citados nos boletins de ocorrência e nas ações movidas pela empresa. Uma mesma pessoa responde a vários processos. Com audiência marcada para comparecer, o cacique Edvaldo de Souza reitera a falta de fundamento das denúncias. “Eles não acusam uma pessoa só, mas várias lideranças na mesma situação. Eles dizem ‘os indígenas vieram armados, com faca, foice, espingarda, revólver’, mas a empresa nunca fala que eles têm armamento, que eles andam armados e vêm para cima de nós”, refuta.
Sobre o uso de arma de fogo pelos seguranças privados, a BBF afirmou que a empresa contrata o serviço de segurança pela natureza do seu negócio e que é alvo de crimes constantes.
O cacique Paulo Nailzo Portilho conta que está sendo investigado por roubo de dois tratores e invasão de propriedade da BBF. Ele nega. “A nossa comunidade tomou posse daquilo que já era nosso [as terras], aí eles tentam nos acusar de invasão de território, de roubo de maquinário”, contesta.
Ele se refere à área da TI tomada pela produção de palma. Não há uma zona de amortecimento entre as áreas da empresa e as comunidades tradicionais, ou seja, as palmeiras estão plantadas na linha de divisa com os territórios coletivos e em diversos pontos avançam sobre eles. Por sua vez, a BBF afirma que a empresa deixou de colher, num período de três meses, 25 mil toneladas de fruto em suas áreas por causa das supostas invasões e colheita feita pelas comunidades.
Lideranças indígenas não negam que parte dos frutos seja vendida e justificam afirmando que isso ocorre para a própria sobrevivência. “A gente está passando por uma grande necessidade aqui dentro. Por causa do dendê, a gente não tem mais caça, os produtos que eles jogavam nos igarapés fazia os peixes morrerem, e o jeito foi comercializar o fruto para ter o que comer”, declara o cacique Paulo Nailzo. Os “produtos” a que se refere são os agrotóxicos e a tibórnia, resíduo da própria planta da palma que, segundo o relato, é despejado nos rios. Em 2021, o MPF entrou com pedido na Justiça para periciar os indígenas atingidos por plantações da BBF, a fim de verificar se havia dano à saúde das populações. O pedido foi negado.
A venda de produtos da empresa não é a única forma de mobilização das comunidades. Moradores envolvem também ONGs nacionais e internacionais para produção de informação, além da ocupação de espaços em posse da empresa. Todas as ações são de conhecimento do MPPA e da Defensoria Pública do estado.
Mulheres indígenas também estão entre as denunciadas à Justiça pela BBF. Yuna Miriam Tembé responde no Fórum de Acará por furto de maquinários e a um processo de denúncia coletiva de invasão do polo industrial da BBF. “Eles te acusam, mas não citam nem o local do furto”, afirma. “Essa é uma das perseguições constantes por parte dela [a BBF], denunciar lideranças de forma caluniosa. Acontece uma situação, não tem indígena nenhum lá, mas ela vai na delegacia e registra que a gente estava lá”, descreve.
“Direito do século XIX”
Ao mesmo tempo que tenta criminalizar os moradores das comunidades tradicionais, a BBF cerca os órgãos que defendem os direitos coletivos dessas comunidades e investigam as ações da companhia.
No último ano, a empresa protocolou representações questionando a atuação de promotores de justiça do MPPA e de um procurador da República do MPF.
No MPF, a denúncia feita ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) resultou na abertura de procedimento interno, que tramitou em sigilo e foi arquivado. Em nota, o MPF informou que não vai se manifestar sobre o caso.
Já no MPPA, uma das denúncias da BBF tenta desvincular crimes contra o patrimônio da empresa do conflito fundiário, solicitando ao Judiciário que investigue e julgue os casos denunciados na esfera criminal, não na fundiária. Na representação feita ao MPPA, a empresa afirma que os casos são independentes.
No entendimento dos promotores, ao contrário, a disputa pela terra é o cerne da questão e, por isso, as denúncias da empresa sobre roubos e ameaças são consideradas no processo inicial, na Vara Agrária.
Segundo o promotor do MP de Acará que acompanha os conflitos que envolvem a BBF, Emério Costa, as ações dos promotores são baseadas na Constituição Federal e nas diretrizes do próprio órgão judiciário.
“Me parece que a empresa tenta aplicar o direito do século XIX, como se nós estivéssemos diante de uma relação meramente civil entre empresa e propriedades rurais, porém o fenômeno é muito mais complexo”, afirma Costa, ao referir que a estratégia da empresa é tratar os casos isoladamente, sem considerar o contexto socioambiental e jurídico do conflito.
Ele explica que um caso como os conflitos do Alto Acará envolve aspectos de vários direitos, como o ambiental, o agrário, o direito territorial e o comunitário. “Considerar essa complexidade não é um comportamento de promotor A ou promotor B, mas é seguir o que está na legislação”, conclui.
Para entender outra representação da BBF contra promotores, é preciso voltar ao segundo turno das eleições presidenciais. Dois dias antes do pleito, no dia 28 de outubro, a empresa cavou trincheiras na comunidade quilombola da Vila Formosa, impedindo o tráfego de veículos na estrada que liga a localidade ao distrito de Quatro Bocas, em Tomé-Açu, onde muitos moradores iriam votar.
“Foi uma atitude desumana da BBF”, afirma Josias Santos, liderança da Amarqualta. “É muito difícil você morar numa comunidade na zona rural, onde a política pública não chega e as estradas são precárias. Nesse dia, muita gente não conseguiu votar.”
No dia seguinte ao segundo turno, as trincheiras foram fechadas pela empresa e as vilas, reconectadas. Indagada pela Pública sobre a escavação, a BBF afirmou que “esta área enfrenta invasões de criminosos” que usam a estrada para “transitar com frutos ilegais” e “realizar desmatamento em áreas de reserva legal”, sem justificar o motivo de ter cavado as valas.
Em março deste de 2022, o impedimento de ir e vir das comunidades tradicionais foi objeto de recomendação do MPPA. O documento reivindica o direito constitucional de “locomoção da coletividade”. Essa recomendação foi questionada na corregedoria pela BBF, que afirmou na denúncia que o MP comete “omissões reiteradas, aliadas a decisões equivocadas”. A empresa pediu à corregedoria que oriente e fiscalize “atividades funcionais e a conduta dos membros do Ministério Público”.
Promotores da 8ª Promotoria de Justiça Agrária de Castanhal também foram representados pela BBF. Depois de terem respondido a um procedimento interno, a denúncia feita contra a promotora Ione Missae da Silva Nakamura e um colega foi arquivada. “Apresentei minha defesa à corregedoria e a denúncia não foi para frente porque não tinha fundamento”, afirma Ione.
Segundo a promotora, a estratégia da empresa não se sustenta no Judiciário. “Não é com base na violência e na criminalização que a gente trata as disputas aqui. A principal esfera é a resolução no âmbito fundiário, agrário, quem é realmente o dono da terra. Me parece que eles [a BBF] não querem muito entrar nessa discussão”, sinaliza Ione.
A Pública tentou acesso ao total de denúncias da BBF feitas à corregedoria do MPPA, que respondeu estarem sob sigilo. Segundo Costa, as denúncias insistentes da BBF contra servidores têm a finalidade de provocar intimidação. “São procedimentos usados quando os argumentos dos investigados são improcedentes. Sabendo que haverá uma perda no processo, a empresa usa estratégias para dificultar o trabalho de investigação”, conclui o promotor.
Questionada sobre as representações contra servidores públicos dos órgãos mencionados, a BBF respondeu que “não comentará sobre o tema, visto que se trata de um assunto interno da companhia e que não comenta sobre sua estratégia jurídica diante os órgãos judiciários”. A nota na íntegra enviada pela empresa pode ser lida aqui.
Pedido de ajuda
A BBF mira o Judiciário paralelamente às forças policiais. A Pública obteve informações de que foram protocoladas representações contra delegados de Tomé-Açú, onde houve três substituições da função só em 2022, parte por pedidos de remoção para outras cidades.
A corregedoria informa, no entanto, a existência de apenas uma representação da BBF contra servidor público lotado na delegacia de polícia do município nos últimos dois anos. O motivo, segundo a empresa, seria o fato de o servidor ter se negado a registrar boletim de ocorrência de furto de maquinário.
Com as pressões por registros de boletim de ocorrência e nas corregedorias, profissionais relatam falta de condições de trabalho, já que a atuação da polícia não envolve apenas o conflito fundiário entre BBF e comunidades tradicionais, mas várias outras atividades como prisões em flagrante, transferência de presos, atendimento ao público, entre outros.
Na delegacia de Acará, por exemplo, o quadro é de seis servidores, sendo um delegado, dois escrivães e três investigadores que se revezam em plantões de sete dias para atender a todas as demandas policiais do município.
O ônus gerado pelo conflito virou solicitação da delegacia de Polícia Civil de Acará na primeira semana de outubro. O delegado Gustavo Amoglia pediu ao juiz da Vara Agrária de Castanhal que os casos envolvendo comunidades tradicionais e danos ambientais fossem encaminhados à PF e que os demais casos de conflitos fundiários de competência da Justiça Estadual sejam remetidos à Delegacia Especializada do Pará.
O pedido é justificado pela “insuficiência de recursos humanos e materiais” na delegacia. Segundo o documento, o reforço é urgente, “sob pena de prejuízo da investigação e da prestação do serviço público relacionado às demandas rotineiras do município”.
Da Polícia Civil, com função investigativa, à Polícia Militar, que opera ostensivamente, a relação com os conflitos fundiários é muito diferente. As abordagens policiais militares são motivo para que membros de comunidades tradicionais de Tomé-Açu não andem tranquilos em seus próprios territórios, mas escondidos ou em grupos.
Segundo membros das comunidades, indígenas e quilombolas são alvo de batidas frequentes. “Toda vez que tu encontrava a polícia e se identificava como indígena ou quilombola, eles vinham te tratando de uma maneira muito truculenta. Xingavam, mandavam descer do carro, tiravam as crianças, revistavam tudo, isso toda vez, como se a gente tivesse arma ou droga. A gente estava muito revoltado com essa situação”, desabafa Paulo Nailzo.
No dia 17 de outubro, indígenas e quilombolas se manifestaram em frente à Unidade Integrada ProPaz do distrito de Quatro Bocas, em Tomé-Açu, uma unidade do sistema paraense de segurança pública, ao lado do quartel da Polícia Militar.
O motivo do ato, explica Edvaldo Santos de Souza, foi mais uma abordagem da polícia que resultou em um indígena e um quilombola detidos naquele dia. “Eles pararam os dois e [os] chamaram de vagabundos, safados, destrataram eles e levaram para a delegacia. A gente se pergunta por quê. Por que tratam assim quando a gente se identifica?”, questiona o cacique.
Segundo os Turiwara, a situação melhorou um pouco depois que eles convidaram o tenente-coronel responsável pela 14ª Companhia de Polícia Militar de Tomé-Açu para visitar a aldeia, em 19 de outubro. Na reunião, algumas lideranças questionaram o tratamento diferente da polícia com as comunidades tradicionais.
“É uma pressão e intimidação contra nós, uma falta de respeito muito grande”, expressou uma liderança Tembé. O tenente-coronel Marcos César de Oliveira Rebêlo, na Polícia Militar há 28 anos, comprometeu-se com a comunidade nesse dia. Disse que a maioria dos policiais sob seu comando “querem o bem-estar da comunidade”, e que vai “tomar providências” contra policiais se necessário, sem mencionar quais medidas tomaria. A Pública pediu à Polícia Militar do Pará que se manifestasse sobre a situação, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Dono da terra
A disputa fundiária com a empresa se dá em mais de um território tradicionalmente ocupado. O território da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta) está parcialmente titulado pela Fundação Palmares, com 12,4 mil hectares. O processo no Incra permanece aberto desde 2009, sem definição. Os motivos são a morosidade do Estado, uma vez que a titulação de territórios tradicionais vem caindo desde o governo Temer, tendo o menor número de processos aprovados no governo Bolsonaro. Outro motivo é o pedido da Amarqualta de reconhecimento do território por uma área maior, de 22 mil hectares, onde moram todas as famílias que vivem na região por gerações.
Os indígenas Turiwara reivindicam área separada da TI Turé-Mariquita, ainda não demarcada como TI. Há um processo em andamento na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), cujas equipes técnicas já fazem visitas de reconhecimento do componente indígena na região.
Já a BBF briga na Justiça pela reintegração de posse de mais de uma fazenda, entre elas a Três Irmãs, a Campos Belo e a fazenda Vera Cruz. Segundo a empresa, 5.366 hectares sob sua posse estão “invadidos” por comunidades locais.
Sobre a fazenda Vera Cruz, a BBF possui dezenas de sobreposições de áreas nos 41,2 mil hectares que declarou no sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Pará. As sobreposições com outros imóveis declarados ocorrem em 36% da área da fazenda. Em nota, a empresa nega qualquer sobreposição com áreas tradicionalmente ocupadas.
Para o pesquisador de bioeconomia do dendê e professor da Universidade Federal do Pará (Ufpa) Elielson Pereira da Silva, o ciclo de violência do dendê avança na fronteira já arrasada da extração ilegal de madeira.
“Em Tomé-Açu não é diferente de outras cidades do Pará. As cidades são polos madeireiros, depois entra a pecuária extensiva, que é deslocada para outros territórios, e dá lugar ao dendê. Esse modelo da grande plantação permanece vivo, e os pontos-chave para sua expansão são a pistolagem e a grilagem, com contornos muito violentos”, declara Silva.
Estado pró-dendê
O estado do Pará se orgulha em liderar a economia do dendê no Brasil, além da do cacau e do açaí. Produzir óleo de palma é uma das atividades que, incentivadas pelo governo, só cresce em extensão e produção, ano a ano. Se no Judiciário os direitos coletivos estão em discussão, alguns representantes dos poderes Executivo e Legislativo tomam o lado do dendê.
Entre eles estão o advogado que representa a BBF na esfera criminal, que já ocupou alguns cargos no governo do estado. Já na Assembleia Legislativa do Pará, a empresa tinha um deputado aliado que se elegeu para o Congresso Nacional em 2022. E na prefeitura de Tomé-Açu, o chefe do Executivo tem histórico de conflito com uma comunidade tradicional.
O advogado Luiz Fernandes Rocha, que um dia foi chefe da pasta de Segurança do estado e prometeu combater a violência incidente no Pará, é um dos responsáveis pela estratégia de assédio processual.
O último programa mais ousado de contratação de policiais no Pará ocorreu na gestão dele como secretário de Estado de Segurança Pública e Defesa Social, entre fevereiro e dezembro de 2018. No cargo que já tinha ocupado entre 2011 e 2014, Fernandes Rocha prometeu aumentar em 3 mil profissionais o efetivo das polícias Civil e Militar no estado, sob o slogan “O Pará unido contra a violência”. Hoje, ele é um dos autores de parte das representações contra promotores e procuradores.
O ex-delegado e ex-secretário não entende só da estrutura precária do sistema de segurança pública, mas também de outro setor. Especializado em direito ambiental e políticas públicas, Fernandes Rocha aceitou o cargo de secretário de Estado do Meio Ambiente e Sustentabilidade, com gestão entre 2015 e 2018, no governo de Simão Jatene (PSDB). Entre outras cadeiras que ocupou, foi presidente de conselhos em defesa da Amazônia. Pela experiência e currículo, Fernandes Rocha transita bem por temas presentes nos processos que a BBF enfrenta e ajuíza.
Outro ex-delegado que está atento ao embate é o deputado estadual pelo Pará, agora eleito deputado federal, Delegado Caveira (PL). Fã declarado e base eleitoral de Jair Bolsonaro em Belém, Caveira aparece em vários vídeos criminalizando as comunidades tradicionais e incitando a violência. Em um deles, num palanque em frente a um público de trabalhadores rurais que manejam as lavouras de palma, diz ao microfone: “Se essa fazenda [uma das áreas em posse da BBF] fosse minha, eu já tinha resolvido há muito tempo. Era entrar e queimar na bala”, ao que se ouvem gritos de apoio.
Em outro vídeo, gravado em frente à Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) em abril deste ano, Caveira afirmou que “onde a Justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar”. À sua volta, estavam trabalhadores rurais, com os quais a BBF acumula infrações trabalhistas.
Em plenário, Caveira se refere às comunidades tradicionais como “falsos indígenas”. O deputado inflama a tribuna afirmando que as supostas ações de queima de maquinários e invasões “estão acabando com os empregos” na região, sem explicar como. A BBF afirma que gera mais de 5 mil empregos diretos só no Pará. Na ocasião, o deputado estadual avisa que não aceita invasão de terras no Brasil.
Localmente, o prefeito de Tomé-Açu, Carlos Antônio Vieira, não tem muito interesse em uma resolução do conflito na área do município sob sua gestão. Isso porque ele próprio é réu na Justiça por grilagem de territórios remanescentes de quilombos.
O Quilombo Umarizal, situado no município de Baião (PA) e certificado pela Fundação Palmares em 2006, teve sua área desmatada por uma empresa madeireira do prefeito, segundo processo ajuizado pelo estado do Pará contra ele.
Na última decisão de segundo grau, os desembargadores entenderam que a empresa madeireira de Vieira desmatou terras públicas do estado e que a área deve ser reflorestada. O prefeito ainda foi condenado a pagar indenização por danos morais coletivos, já que a área está situada na Amazônia Legal. O prefeito pode recorrer.
Todos os citados nesta reportagem foram procurados pela Pública, por telefone e por e-mail. O deputado Caveira, o advogado e ex-secretário de governo Luiz Fernandes Rocha e o prefeito de Tomé-Açu, Carlos Vieira, não responderam até o momento da publicação.
Texto: apublica.org.