Timidez, passividade, poucas amizades e rápido desenvolvimento da fala. Essas características podem ser comuns e até esperadas socialmente em meninas, mas, também podem encobrir algo ainda pouco investigado e diagnosticado no sexo feminino: o autismo. As pesquisas que envolvem o Transtorno do Espectro Autista (TEA) – distúrbio do neurodesenvolvimento que afeta o desenvolvimento de capacidades de comunicação, interação e atenção – ainda tem o foco em meninos, por isso, poucos estudos falam especificamente de como o TEA ocorre em meninas.
A demora no diagnóstico em meninas as leva a perder a chance de desenvolver suas habilidades, assim como compreender quem são, manifestação de determinados comportamentos ao longo de suas vidas e este atraso impacta diretamente na qualidade de vida. Além disso, quanto mais tardio o diagnóstico, maiores as chances de elas desenvolverem outras comorbidades, como depressão e ansiedade.
A boa notícia é que o cenário parece estar mudando, graças à ciência. A quantidade de pesquisadores e estudos interessados em analisar a questão de gênero e os fatores que influenciam o TEA em meninas tem aumentado. Atualmente, cientistas buscam acompanhar as meninas autistas desde criança para que novos modelos de diagnóstico sejam traçados.
CAMUFLAGEM/ MASKING/ MASCARAMENTO
Muitas meninas “disfarçam” ou “camuflam” seu autismo desviando-se do diagnóstico até a idade adulta. O fenômeno batizado de masking, mascaramento ou ainda camuflagem social, implica em um esforço contínuo e elaborado das mulheres para imitar o comportamento neurotípico (pessoas não autistas) e, assim, manterem seus empregos e relacionamentos.
Um estudo de 2017 estabeleceu uma definição com a finalidade de pesquisa: “camuflar” é a diferença entre como as pessoas se mostram em contextos sociais e como elas se sentem de fato interiormente. “Se, por exemplo, alguém tem traços intensos de autismo, mas tende a não demonstrá-los em seu comportamento, a disparidade indica que está se camuflando”, diz Meng-Chuan Lai, professor assistente de psiquiatria da Universidade de Toronto, Canadá, que trabalhou no estudo.
A definição do mascaramento é necessariamente ampla e inclui qualquer esforço para mascarar uma característica de autismo, que vai desde evitar comportamentos repetitivos ou falar sobre interesses obsessivos, até o esforço para seguir em uma conversa ou imitar o comportamento esperado socialmente.
Esse esforço considerável para ser socialmente aceito resulta no esgotamento – mental, físico e emocional.
O QUE DIZEM OS ESPECIALISTAS
O BT conversou com a psicóloga Bárbara Dresch, que atua com avaliação psicodiagnóstica e terapia para autistas adultos e adolescentes. A profissional falou sobre as dificuldades que as mulheres no espectro enfrentam e algumas razões para o subdiagnóstico.
Bárbara explica que os estudos a respeito do diagnóstico tardio do autismo ainda são muito recentes e que há pouco material publicado sobre o tema. Do pouco que existe, a maioria é em inglês, sem tradução para o português.
Outro agravante é a falta de profissionais capacitados para identificar o autismo em mulheres. Além disso, as características nelas podem ser mais sutis, como revela Bárbara: “Precisamos olhar para a história, as características presentes na infância, os marcos do desenvolvimento bem como os prejuízos na fase adulta. Muitas mulheres têm uma vida funcional, trabalham, estudam, cuidam dos filhos e da casa”, explica. Isso as aproxima de um padrão de comportamento neurotípico.
No entanto, o esforço para isso tem seus custos, como destaca a psicóloga: “Muitas vezes percebo que (mulheres têm vida funcional) com grande sofrimento e um grande custo, com prejuízos significativos na saúde física e mental que levam a outros diagnósticos como Depressão, Transtornos de Ansiedade, Transtorno Bipolar entre outros. Uma pessoa autista com nível de suporte 1 tem muitas questões emocionais a serem vistas, pela tentativa de se enquadrar no padrão neurotípico”.
As pessoas que se enquadram no nível 1 de TEA, precisam de menos suporte. Já as que estão no nível 2, precisam de mais apoio para fazer determinadas atividades. Enquanto aquelas que estão no nível 3, o tipo mais severo de autismo, precisam de muito suporte para realizar atividades da vida diária.
A vida antes do diagnóstico é diferente para cada autista. Mas, em maior ou menor grau, os neurodivergentes acumulam prejuízos. “Pode aparecer certa dificuldade em iniciar e manter amizades bem como relações afetivas, em conciliar o trabalho com as tarefas domésticas e filhos”, como pontuou Bárbara.
Assim como eles podem ter dificuldades maiores e até desenvolver comorbidades. “Em alguns casos a depressão e ansiedade, bem como o sentimento de fracasso e incapacidade frente a vida podem ser um tanto limitantes. As crises que podem ser decorrentes de questões sensoriais, demandas emocionais ou excesso de interação social também trazem prejuízos significativos para a vida”, descreveu a profissional.
ATENÇÃO AOS SINAIS
“Na avaĺiaçao psicodiagnóstica de autismo em mulheres, percebo que as principais queixas das mulheres são o cansaço excessivo, mais conhecido como sobrecarga que pode ser sensorial, emocional ou social”, revelou Bárbara. Estes sintomas são resultado, principalmente, do masking ou mascaramento, mencionado anteriormente.
A psicóloga descreve ainda outras características frequentes que levam mulheres a buscarem o diagnóstico de autismo. “Sintomas depressivos, ansiedade, crises de dor (associadas a sobrecarga ou processos psicossomáticos). A dificuldade nas relações sociais, na construção de vínculos, na interação social. A presença de comportamentos restritos e repetitivos (como hiperfoco e estereotipias), mesmo que não sejam claros para quem busca o diagnóstico levam ao sentimento de sentir-se diferente. Crises sensoriais devido ao excesso de estímulo do ambiente também são comuns”, esclareceu.
Muitos autistas dizem que o diagnóstico pode ser libertador ou um alívio. Mesmo na idade adulta, a descoberta do transtorno é importante e pode trazer a tão sonhada qualidade de vida.
“O diagnóstico, bem como o acompanhamento médico e psicológico, são importantes. Em alguns casos a terapia ocupacional para tratamento das questões sensoriais é também imprescindível. O suporte da família bem como o suporte de profissionais capacitados ajudam muito a minimizar os prejuízos na fase adulta”, finalizou Bárbara.
RELATO DE UMA AUTISTA
Agora, esta jornalista, mulher e autista, pede licença para escrever em primeira pessoa e contar um pouco sobre sua experiência de diagnóstico tardio.
Sempre me senti um “peixe fora d’água”. A frase clichê descreve bem o sentimento de uma vida inteira tentando decifrar o comportamento das pessoas ao meu redor, entender códigos sociais e, sobretudo, se eu estava agindo do jeito certo. Sempre lembro que, diante de novas situações, me questionava internamente se todas as pessoas tinham recebido um manual de instruções menos eu. Acredito que essa pergunta resume um pouco do que vivi antes do diagnóstico.
Ter um sobrinho autista, com 28 anos, me fez entrar de cabeça no mundo da neurodiversidade. Pela primeira vez, meu núcleo familiar (pai,mãe e irmãos), encarava, abraçava e se abria para conhecer e entender a realidade de uma pessoa com deficiência.
Somente um ano depois li pela primeira vez conteúdos sobre mulheres autistas. O choque real foi ali. O texto não era daqueles conteúdos carregados de estereótipos e superficialidade. Foi compartilhado por uma socióloga no seu perfil do instagram com informações baseadas na ciência e de uma maneira que eu desconhecia. O choque foi justamente por me identificar com a maioria dos sinais que indicavam o autismo em mulheres.
Primeiro veio a crise de choro, a negação e ela, que acompanha todo o processo até o diagnóstico profissional: a dúvida. Poderia eu ser autista? A pergunta ainda demorou um pouco para ser respondida. No início de 2021, depois de muitas crises de sobrecarga, tristeza constante, a necessidade de respostas e ela, a dúvida, iniciei a investigação em uma clínica especializada em diagnóstico de pessoas adultas.
Chegar até essa clínica não foi fácil, assim como todo o caminho até o diagnóstico psiquiátrico. A esta altura eu já acompanhava diversas mulheres neurodiversas nas redes sociais, conhecia suas experiências e a dificuldade em encontrar profissionais que validassem relatórios de psicólogos ou ao menos cogitassem a possibilidade de elas serem autistas, já que elas trabalhavam, eram oralizadas ou namoravam – para muitos profissionais, ser minimamente funcional e autista não é possível.
O diagnóstico do autismo veio após várias sessões de avaliação com uma psicóloga, e, de brinde, descobri o TDAH – é bastante comum a associação de dois transtornos em pessoas neurodivergentes. O resultado, para ter efeito, precisou ser confirmado por uma psiquiatra, que foi quem emitiu o meu diagnóstico oficial.
Honestamente, o processo é longo, desgastante, às vezes desesperador, mas, acima de tudo, libertador. Pude finalmente conhecer quem sou – na verdade ainda estou nesse processo – aceitar minhas limitações, entender comportamentos e me olhar com mais respeito e admiração.