Via Agência Pública, por Rubens Valente.
Quatro exames realizados pela perícia criminal federal da PF (Polícia Federal) e concluídos em novembro e dezembro do ano passado, aos quais a Agência Pública teve acesso, não chegaram a uma conclusão definitiva sobre a causa. Mas um deles apontou “natural/não traumática” como “a hipótese mais provável” para a morte do indígena isolado de Rondônia que ficou conhecido como “índio do buraco”.
Ele era considerado um símbolo da resistência dos povos indígenas isolados no país. Por mais de 25 anos, no mínimo, recusou qualquer contato com não indígenas e indigenistas da Funai, até ser encontrado morto, no ano passado, na palhoça em que vivia num território de 8 mil hectares de uso restrito que incide sobre quatro municípios de Rondônia (Chupinguaia, Corumbiara, Parecis e Pimenteiras do Oeste).
O corpo, deitado numa rede em posição fetal, com a cabeça inclinada para a esquerda, a mão esquerda perto da cabeça e a direita sobre o peito, foi localizado em 23 de agosto passado pelo indigenista Altair Algayer, da equipe da FPE (Frente de Proteção Etnoambiental) Guaporé, vinculada à CGIIRC (Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato) da Funai (Fundação Nacional do Índio). Algayer, que por mais de duas décadas protegeu e monitorou o “índio do buraco”, acionou a PF e o MPF (Ministério Público Federal).
O trabalho dos peritos mobilizou, ao longo de semanas, uma dezena de peritos criminais federais do INC (Instituto Nacional de Criminalística) da PF em Brasília, para onde o corpo foi levado. Quatro deles também estiveram na palhoça. As condições do cadáver, deteriorado pela ação do tempo, dificultaram os exames. Estimou-se que ele tinha morrido de 30 a 40 dias antes do início dos exames, que ocorreram de 29 de agosto a 2 de setembro.
Nunca se soube nome, etnia, língua e idade do “índio do buraco” – mistérios que sobrevivem à sua morte e à investigação da PF. Os laudos, por outro lado, lançam luzes sobre o modo de vida e os últimos dias do indígena.
Com cerca de 1,60 m, segundo o exame, sua compleição física era de “mediana a pequena”. Tinha cabelos pretos lisos. Seu estado nutricional, e aqui surge uma pista importante para os peritos, “aparentava caquexia”. Trata-se de um grau extremo de enfraquecimento, uma perda importante de peso e de massa muscular.
Algayer encaminhou ao MPF e à PF as últimas imagens do indígena coletadas no dia 4 de junho por uma câmera de monitoramento instalada pela Funai numa roça utilizada pelo isolado para plantar principalmente mamão e milho. A câmera ajudava a Funai a prevenir, por exemplo, ação de invasores no território que vinha sendo interditado por portaria da Funai desde os anos 1990. Dois frames do vídeo mostram o índio do buraco esquálido, com os ossos do peito à mostra. Ele andava apoiado num cajado, o que reitera o estado de fraqueza.
No seu relatório, Algayer escreveu que “as imagens indicam que o índio se encontrava com o corpo debilitado, mais magro, com a pele flácida e mais clara”.
“Os pêlos no queixo (barba) estão embranquecidos com o avançar da sua idade. Em todas as imagens, ele aparece com uma vara na mão para se apoiar ao caminhar. Na imagem feita no dia 04/06, ele está parado e as duas mãos estão firmes na vara para apoiar o seu corpo. […]. Em nenhuma delas aparece com arco e flechas, nem com o facão. Armamentos e ferramentas sempre estavam presentes em todos os momentos que tivemos contato com ele”, escreveu o indigenista da Funai.
O corpo tinha, no torso, um adereço de fibra artesanal. Na cabeça, um tipo de chapéu “feito com o que o parece ser um saco de estopa”. Na região da cintura, penas amarelas e azuis, “um colar de sementes redondas murchas” e um adereço “fixo ao torso aparentemente composto de fibra vegetal bruta”.
Os peritos responsáveis pelo laudo de medicina e odontologia forense – Cristian Kotinda Junior, Rodrigo Travassos Pereira da Silva e Hugo Oliveira de Figueiredo – fizeram radiografias do “crânio, tórax, região abdominal, pelve, membros superiores e membros inferiores”. Não observaram “alterações na estrutura óssea que pudessem sugerir ação traumática”. Tampouco foram “evidenciados projetis ou outros corpos estranhos”. Também “não houve fraturas dos ossos do crânio” e nem sinais evidentes de asfixia.
“O exame minucioso da superfície corporal tegumentar remanescente não evidenciou alterações traumáticas. No entanto, mais uma vez, ratificam-se as limitações inerentes ao exame”, dizem os peritos, pois os restos mortais estavam prejudicados pela ação do tempo.
“Em decorrência das condições em que se encontravam os restos mortais, foram apontadas limitações para o estabelecimento do intervalo de morte e para a determinação da causa do óbito. Não foi possível se estabelecer de forma taxativa a causa da morte”, diz o laudo. Os peritos observaram que “não foram constatados, nos exames de imagem a que se procedeu, bem como no exame cadavérico direto, lesões nos segmentos cutâneos, lesões ósseas ou outros elementos que apontassem para uma morte violenta em decorrência de trauma/ação externa”.
Por outro lado, pontuam os peritos, “não se pode, de maneira taxativa, excluir eventual trauma/lesão que acometesse somente os tecidos moles ora ausentes” em razão do processo de deterioração do corpo. “No entanto, a não constatação de lesões tegumentares mais extensas e a ausência de lesões/fraturas/infiltrações ósseas em regiões de estruturas vitais como crânio/tórax restringem significativamente a possibilidade de morte decorrente de agente externo/trauma fatal.”
Após citar o relatório da Funai que inclui as imagens de vídeo, os peritos ressaltaram que “corroboram ainda para a hipótese de morte natural/não traumática a postura/posição em que [o indígena] fora encontrado, as condições de provável inanição/caquexia observadas ao exame, bem como a presença de adereços sugestivamente ritualísticos”.
Ao longo da investigação, surgiu a hipótese de suicídio por meio da ingestão de alguma substância venenosa produzida a partir de ervas ou plantas relacionadas ao conhecimento tradicional dos povos indígenas. Essa linha, contudo, “é de difícil comprovação/detecção devido à inexistência de padrões para pesquisa toxicológica”, disseram os peritos.
O laudo de química forense, subscrito pela perita federal Gabriele Hampel, analisou uma garrafa plástica, uma tigela de metal, dois pequenos baldes de metal, uma amostra de solo e uma substância em pó raspada de um pilão coletado dentro da palhoça do indígena. O exame “não detectou a presença de compostos orgânicos de interesse forense (drogas, fármacos e agrotóxicos)” e também ficou impossibilitado “o levantamento de hipóteses sobre a dinâmica, circunstâncias ou causa da morte”.
O exame do local da morte, cujo laudo foi assinado pelos peritos criminais federais Luciana Lobato Schmidt, Bruno Costa Pitanga Maia e Alexandre Raphael Deitos, procurou levantar “elementos que permitam esclarecer as circunstâncias da morte e verificar se os vestígios são compatíveis com morte natural ou violenta”. Eles procuraram “elementos relacionados a uma morte violenta, tais como luta corporal, impactos em superfícies causados por disparos de arma de fogo ou de flechas, substâncias químicas, manchas de sangue etc”.
O local foi devassado com “fotografias, vídeos, escaneamentos” realizadas com “equipamentos diversos, dentre eles câmeras fotográficas digitais, trenas laser para medições, detector de metais, aeronave remotamente pilotada (ARP) e escâner laser 3D”. Apurou-se que o buraco aberto no chão pelo indígena dentro de sua palhoça – o apelido de “índio do buraco” surgiu pela prática do indígena de abrir cavidades no solo na mata; o objetivo desses buracos até hoje é controverso – tinha 2,15 m de profundidade e aproximadamente 54 cm por 84 cm de largura.
Ao lado do corpo havia três cajados, flechas, taquaras para fazer flechas, duas tigelas de metal, um cesto, um pedaço de bambu contendo milho, uma lata amassada, penas para abanar fogo, um pilão, duas colheres, espigas de milho e cera de abelha, dois machados, um pote feito de cabaça de côco, uma vara com cipó de 5 metros e uma foice de 53 cm.
Depois de mencionarem novamente o relatório da Funai, os peritos frisaram não ter encontrado no local “sinais de luta nem a presença de ervas e plantas de interesse toxicológico”. Além disso, “os exames de química forense não detectaram compostos orgânicos nas amostras coletadas e ainda os exames de genética forense não detectaram a presença de uma pessoa estranha ao local, não obstante tais exames não tenham sido categóricos na exclusão total de outras hipóteses”.
O laudo de genética forense, produzido pelas peritas criminais federais Diana Vilas Boas e Silva e Cristina Moniz de Aragão Gualda, analisou duas colheres de metal com cabo de madeira, que foram coletadas na palhoça do indígena isolado, e comparou o DNA com um pedaço de cartilagem retirada do fêmur do indígena. Não identificou pessoa estranha no local.
De acordo com o exame do local da morte, “todos esses fatores apontam como hipótese mais provável uma morte natural/não traumática ao ‘Índio do Buraco’”.
“Uma possibilidade que se aventa é a de óbito em decorrência de causas naturais/não traumática. Neste sentido, há que se considerar o histórico contido em relatório da Funai que, em sua última aparição, [o indígena] apresentava-se emagrecido, fragilizado, claudicante, utilizando-se de ‘cajados’ como apoio à sua mobilização. Além da observação de que modificara seu modus operandi, tendo abandonado o roçado e deixado de se utilizar/extrair recursos costumeiros”, diz o exame do local da morte.
Após pressão do MPF e de entidades como o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato), o corpo do indígena foi enterrado no início de novembro no interior da mesma palhoça na qual foi encontrado, em agosto. Há agora pressões de fazendeiros para que a Funai abra mão dos 8 mil hectares que vinham sendo interditados, a partir da constatação da presença do isolado desde a década de 1990.
Ação do MPF pede providências
No último dia 27 de dezembro, os procuradores da República do MPF em Ji-Paraná (RO) Daniel Luís Dalberto e Leonardo Trevizani Caberlon ajuizaram uma ação civil pública, ainda sob análise do Judiciário, pela qual solicitaram dez providências à Funai e à União, entre as quais a apresentação, num prazo de 30 dias, de “um plano de proteção territorial da área, o qual deve ter, inclusive, visitas regulares à área e seu monitoramento”.
Os procuradores querem que a Funai e a União sejam obrigadas a manter a Portaria de Restrição de Uso sobre a área até o trânsito em julgado da ação civil pública. No prazo de um ano, defendem os procuradores, a área deve ser identificada e demarcada como terra indígena, então denominada Tanaru, em referência a um rio da região. A terra, diz o MPF, deverá ter uma “destinação socioambiental, consultando-se, a respeito, os povos indígenas da região, especialmente os Kanoé, os Akuntsu, os Aikanã, os Sakurabiat, os Kwazá e os indígenas que atuam pela Funai há décadas no monitoramento e proteção da área”.
Os procuradores apontaram que o indígena “trata-se de um único sobrevivente de genocídio de um povo desconhecido”.
“Esse indígena foi acossado e cercado pelo avanço da fronteira econômica promovido pelo Estado. Resistiu bravamente e sozinho por quase três décadas. Recusou a todas as tentativas de contato e aproximação com a nossa sociedade. Levou adiante sua própria civilização até agosto de 2022, quando faleceu, usando tradicionalmente o território que restou após o esbulho do território ancestral de seu povo. […] Sua sobrevivência, em condições de isolamento, em ambiente inóspito como é o das florestas tropicais é um feito grandioso e extraordinário, que atestou sua incrível autonomia e a eficácia de suas técnicas, herdadas de seu povo, que lamentavelmente foi exterminado por colonizadores da área, sob omissão do Estado, sem que lhes déssemos chances de sobrevivência e perpetuação, em afronta aos direitos humanos mais caros e às normas basilares do ordenamento jurídico”, diz a peça inicial da ação civil pública.
Texto: apublica.org.