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Coluna Ingo Müller | O “migué” do presidente

Bolsonaro teve alta do hospital na quarta-feira após passar o começo da semana internado por conta de uma obstrução intestinal. Tão logo foi liberado pelos médicos, não tardou a fazer aquilo que esteve impedido nos últimos dias mas que agora, com as funções restauradas, vai voltar a ser rotina: falar pro seu público.

Digo que o diálogo é para o seu público porque, desde 2018, o presidente só consegue pregar para convertidos – pessoas que gritam “mito! Mito!” antes mesmo dele articular a primeira sílaba. Sem essa aprovação prévia a fala do presidente não funciona, porque aos ouvidos de qualquer pessoa normal o discurso do inquilino do planalto não se sustenta.

As declarações dele à imprensa na saída do hospital, por exemplo, serviram para se defender das cobranças levantadas pela hashtag #bolsonarovagabundo nas redes sociais, mas revelam um presidente com o rancor típico dos que estão em débito: na conversa com os jornalistas, Jair disse que era “maldoso” afirmar que estava de férias em Santa Catarina durante o episódio que acabou mandando ele para o hospital. Segundo Bolsonaro, um presidente “jamais tira férias” – gostaria de saber, então, qual é a agenda oficial que ele cumpria no Beto Carreiro World.

Não sou contra o presidente tirar férias. Acho que descansar é um direito do cidadão, e direitos valem para todas as pessoas, sejam íntegros ou canalhas. O problema é querer aplicar essa conversa que, francamente, pega pior pra ele do que assumir que tinha, sim, tirado uns dias pra dar um rolê de jet-ski.

Porque a lógica é simples: já que não tava de férias, não tira férias nunca, qual a explicação para não ter seguido o protocolo de qualquer chefe de estado digno e ir visitar a região do seu país que havia sido atingida por uma catástrofe? A Bahia debaixo d’água, e o Bolsonaro lá dando rolê no sul… se não tinha férias, se estava trabalhando, qual era a atividade mais importante para um presidente do que atuar numa crise?

O que me espanta disso tudo é que, a despeito de todas as limitações, Bolsonaro sempre soube ser oportunista. Uma tragédia, como esta da Bahia, é algo com que todo político de carreira costuma pelo menos fingir que se importa, nem que seja para arrebanhar votos.

Fico pensando se ele desaprendeu a cartilha populista ou se está perdido no personagem, dividido entre o machão imbroxável e a vítima de atentado – as duas personas que ele evoca, conforme a conveniência, agora se misturam até na mesma frase, como quando ele disse que ia saltar de paraquedas em fevereiro, mas que por conta da saúde não vai mais.

Percebam que não estou colocando a saúde do presidente em xeque, mas sua coerência – fica esquisito, para quem habitualmente minimiza sofrimento alheio, cobrar empatia quando convalesce… assim como fica esquisito tirar um cirurgião das férias nas Bahamas para cuidar de um mal estar causado por um camarão mal digerido. Para o bem dele mesmo, é bom que Bolsonaro cuide da própria boca, até porque tudo indica que, ao final do ano, ele estará novamente engasgado – só que, em vez de camarão, pode ser lula a ficar atravessado em sua garganta.