Via Agência Pública, por Anna Beatriz Anjos. Edição: Giovana Girardi.
A 28ª Conferência do Clima das Nações Unidas (ONU), a COP28, terminou em 13 de dezembro com uma inédita sinalização para o “início do fim” da era do carvão, gás e petróleo. Os quase 200 países presentes na mais importante rodada de negociações climáticas concordaram em contribuir para que seja realizada a transição dos sistemas de energia deixando para trás os combustíveis fósseis.
O “Consenso de Dubai”, o documento final da cúpula, representa um avanço: é a primeira vez, em 31 anos de discussões sobre mudanças climáticas no âmbito da ONU, que a principal causa do aquecimento global – o uso dos fósseis – é diretamente abordada em uma decisão final das COPs. Mas não vai muito além disso.
Ele não detalha como essa transição deve ocorrer, não tem metas nem cronograma, motivo pelo qual os países mais vulneráveis à crise do clima e organizações da sociedade civil qualificaram o compromisso como insuficiente. Para eles, o documento deveria trazer um plano para a eliminação gradual do uso dos combustíveis fósseis – condição fundamental para que seja possível limitar o aquecimento médio global a 1,5°C em relação aos níveis pré-Revolução Industrial, a meta mais ambiciosa do Acordo de Pais.
Independentemente da falta de assertividade da decisão da COP, ficam algumas questões: Temos condições de realmente abandonar os fósseis? Sabemos como fazer isso? O que é necessário para chegar lá? Para responder a essas questões, a Agência Pública foi atrás de estudos e de especialistas que apontam como poderia se dar essa trajetória.
O ano de 2023, o mais quente da história, já teve uma temperatura próxima do limite do Acordo de Paris, o que indica que o tempo para fazer a transição é cada vez mais curto.
POR QUE ISSO IMPORTA?
- Países sinalizaram, na Conferência do Clima da ONU, em Dubai, “início do fim da era dos combustíveis fósseis”, mas sem definir metas nem prazo para, de fato, abandonar o uso de petróleo, gás e carvão;
- Mudança é considerada imprescindível para conter o aquecimento global e organizações já apontam os caminhos para isso acontecer, mas países ainda não se comprometeram com isso.
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), o cumprimento desse objetivo requer “reduções profundas, rápidas e sustentadas” nas emissões de gases de efeito estufa, como o gás carbônico (CO2), de 43% até 2030 e 60% até 2035, em relação ao nível de 2019, de modo que as emissões líquidas sejam zeradas até 2050.
Nesse cenário, conhecido como net zero, as emissões são reduzidas ao máximo, e o remanescente é removido da atmosfera por sumidouros naturais, como as florestas, ou tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCS, na sigla em inglês), ainda incipientes.
Um relatório produzido pelo International Institute for Sustainable Development (IISD) com base em conclusões do sexto e mais recente ciclo de análises do IPCC indica, por exemplo, que a produção de petróleo e gás precisa cair em 30% até 2030 e em 65% até 2050 para que seja mantida a meta do 1,5°C. Isso significa que, nesta década, entre 2020 e 2030, é necessária uma diminuição anual de 3% na produção das duas fontes de energia.
Já a Agência Internacional de Energia (IEA), em estudo lançado em 2023 sobre o que precisaria ser feito para chegar ao net zero em 2050, projeta a necessidade de haver uma queda de 25% na demanda por combustíveis fósseis até 2030, de modo a tornar desnecessários novos projetos de exploração de petróleo e gás de longo prazo, assim como de novas minas de carvão ou ampliações de minas existentes.
Isso pode ser possível, de acordo com a IEA, com a expansão na oferta de energias renováveis, como solar e eólica, entre outras. A agência avalia que é necessário triplicar, até 2030, a capacidade global das renováveis de gerar energia, além de dobrar a taxa anual de melhoria da eficiência energética no mesmo prazo. Esses dois elementos estão presentes na decisão da COP28 como um dos “esforços globais” aos quais os países concordaram em contribuir.
Os planos atuais de vários países e da indústria de combustíveis fósseis, porém, vão na contramão disso. Um estudo lançado no ano passado pelo programa ambiental da ONU, o Pnuma, revelou que a produção planejada por eles até 2030 é mais que o dobro (110%) da quantidade de combustíveis fósseis que seria consistente com a limitação do aquecimento a 1,5 °C.
André Ferreira, diretor-executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), destaca que o ponto chave dessa discussão é a redução da demanda por petróleo, gás e carvão. “Na COP28, o foco esteve na produção [dos combustíveis], pelo fato de a sede ter sido um país produtor e exportador de petróleo, mas precisamos falar das duas coisas juntas”, pontua.
“É necessário manter um ritmo de produção e oferta de fontes renováveis suficiente para que seja possível abandonar novas fronteiras de exploração de fósseis”, afirma. Ele explica que o grande desafio é o uso de renováveis no setor de transportes e na indústria.
“Ao que parece, o consumo de energia fóssil para gerar energia elétrica está em boa direção. Possivelmente, o setor de eletricidade será o primeiro a zerar [o uso de fósseis]”, diz Ferreira. “O desafio maior está no transporte de carga a longa distância, na substituição do óleo diesel [nos caminhões, por outro tipo de combustível].”
A dificuldade de encontrar uma fonte de energia substituta se estende também à produção de cimento, aço e derivados de petróleo, como o plástico. “Esses são setores que precisarão ter suas emissões compensadas de alguma forma ainda. Mesmo em 2050, num cenário net zero, haverá neles algum consumo de fóssil”, aponta.
Prazos diferentes e apoio financeiro: os elementos para uma transição justa
Embora o abandono do carvão, gás e petróleo e sua substituição por fontes renováveis sejam urgentes para manter ao alcance a meta do 1,5°C, essa intrincada equação não deve envolver todos os países do mundo da mesma maneira, diante da responsabilidade dos ricos nas emissões históricas de gases de efeito estufa que causam o aquecimento global.
A própria IEA reconhece isso. “Gostaria de sublinhar que alcançar o net zero até 2050 não é para todos os países. Neste caminho, as economias mais avançadas atingem o zero líquido mais cedo para assegurar mais tempo às economias emergentes e em desenvolvimento”, escreveu Fatih Birol, diretor-executivo da IEA na introdução do relatório.
É isso que reivindicam as nações em desenvolvimento. Elas brigaram para que a decisão da COP28 estabelecesse prazos diferenciados para a eliminação dos fósseis, colocando as desenvolvidas na dianteira do processo, já que são elas as maiores emissoras históricas dos gases de efeito estufa que causam o aquecimento global.
A demanda tem base em um dos princípios da Convenção-Quadro do Clima da ONU, criada em 1992: o das “responsabilidades comuns porém diferenciadas e respectivas capacidades”, que reconhece as diferentes responsabilidades e condições dos países no enfrentamento à crise climática.
O Brasil é um dos países que defenderam a proposta durante a conferência. O documento final cita que as nações devem contribuir para o processo de afastamento do uso de fósseis de acordo com “suas diferentes circunstâncias, caminhos e abordagens nacionais”, mas não impõe aos desenvolvidos nenhuma responsabilidade de liderar a transição.
Um relatório lançado durante a cúpula de Dubai pela Civil Society Equity Review, rede global de movimentos sociais, ONGs, sindicatos, grupos religiosos e outras organizações da sociedade civil, traçou um panorama de como esses diferentes prazos para o fim do uso de carvão, petróleo e gás poderiam funcionar na prática.
Com base em cenários de manutenção da meta de 1,5°C projetados pelo IPCC, o estudo identificou caminhos de eliminação dos fósseis para cada país levando em conta seu grau de dependência em relação a eles para o abastecimento interno de energia, criação de empregos e geração de orçamento. Esses componentes têm peso maior para as nações com maiores limitações técnicas e econômicas de realizar a transição energética.
Os prazos diferenciados são um dos pilares da análise. O outro é o apoio financeiro que alguns países precisarão receber para se afastar do uso dos combustíveis fósseis. “Os dois elementos determinantes de qualquer proposta quantitativa de eliminação gradual [dos fósseis] plausivelmente justa – prazos e apoio – são inseparáveis”, destaca o documento.
A parcela de cada um
Capacidade econômica e responsabilidade pelo cumulativo das emissões foram os critérios empregados para definir quem deve doar e receber os recursos. Estados com capacidade per capita acima da média global, que juntos representam cerca de dois terços do PIB do mundo, são fornecedores de apoio, sejam eles produtores ou não de petróleo, carvão ou gás. Todos os demais são recebedores. O relatório calculou ainda as parcelas de contribuição que cada país doador deveria prover.
O resultado dessa conta é que os países com economias e matrizes energéticas mais dependentes das fontes fósseis podem dispor de tempo maior para eliminá-las, tarefa que precisa ser iniciada antes pelos menos dependentes. Além disso, os ricos devem financiar os pobres nesse processo.
Segundo o relatório, o Brasil integra o grupo dos que devem abolir o uso de petróleo, carvão e gás entre 2030 e 2035, mas precisa de suporte financeiro para cumprir a medida. Já Iraque, Líbia, Sudão do Sul e Guiné Equatorial, por serem altamente dependentes da produção de petróleo, teriam até 2050 para abandoná-lo, também sob a condição de receber financiamento para tal.
“Países como a Austrália, de onde venho, ou os Estados Unidos são produtores muito mais expressivos de combustíveis fósseis, mas a dependência de suas economias em relação a eles é muito menor. Além disso, são países mais ricos, portanto, sua capacidade de se mover mais rápido [na transição energética] é muito mais elevada”, explica Rebecca Byrnes, vice-diretora do Tratado de Não Proliferação dos Combustíveis Fósseis, que advoga pelo fim do uso de petróleo, gás e carvão.
A iniciativa ganhou projeção na COP28 após a entrada da Colômbia. Além do país governado por Gustavo Petro, outras dez pequenas ilhas são signatárias do tratado.
O estudo coloca os Estados Unidos na linha de frente da eliminação do uso dos três combustíveis fósseis – está entre os primeiros no grupo dos que devem fazê-lo entre 2030 a 2035 – e do financiamento às nações em desenvolvimento. Em relação ao último critério, é o país com a maior responsabilidade: segundo os cálculos, sozinho, deve prover 46,3% dos recursos que ajudarão a viabilizar a transição energética entre os pobres – o equivalente a US$ 97,1 bi ao ano.
Na segunda posição está a União Europeia, que deve uma contribuição de 20,7% (US$ 43,4 bi por ano), e, em terceiro lugar, o Japão, com um “fair share” de 9,3% (US$ 19,5 bi anuais).
Texto: apublica.org.