Via Agência Pública, por Rubens Valente.
O ocupante do principal cargo da Funai (Fundação Nacional do Índio) na Terra Indígena Vale do Javari – em razão da qual foram assassinados, em 5 de junho, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips – pediu demissão em meio ao clima de grande insegurança entre os servidores do órgão naquela região do Amazonas. Além de Bruno e Dom foi assassinado o colaborador da Funai Maxciel Pereira, em 2019, eventos traumáticos que tornaram o dia a dia dos servidores da Funai na região um foco constante de tensão e preocupação.
É a sexta vez, durante o governo de Jair Bolsonaro, que há uma mudança no cargo, sintoma da grande instabilidade administrativa provocada pelas decisões do comando da Funai, em Brasília, e que atinge o cotidiano das atividades da Frente, segundo indigenistas consultados pela Agência Pública. As frentes de proteção etnoambientais no país são vinculadas a uma coordenação da Funai na capital federal.
A Frente do Javari está sem titular desde novembro de 2020, após um titular ter sido nomeado e ficado no cargo apenas três meses. Desde então, a Frente tem sido sempre ocupada por interinos. O presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, nunca esteve na região, nem mesmo após os assassinatos de Bruno e Dom.
O coordenador substituto da Frente de Proteção Etnoambiental da Funai na terra indígena, Leandro Ribeiro do Amaral, foi dispensado, a pedido, do seu encargo. O ato foi assinado pelo presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, e publicado na edição desta quinta-feira (28) do Diário Oficial da União.
Nascido no interior de São Paulo, Amaral é graduado em história pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), mestre em preservação do patrimônio cultural pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e está na Funai desde 2018. Há quatro anos ele atua no Vale do Javari, onde conheceu e se tornou amigo de Bruno Pereira. Ele atuava de fato como coordenador da Frente desde abril passado. A ocupante anterior do cargo, também interina, Idenilda Obando de Oliveira, foi transferida para a coordenação regional do Alto Solimões (AM).
Colegas de Amaral ouvidos pela Pública disseram que o pedido de dispensa do cargo tem relação direta com o clima de insegurança e as condições de trabalho na região. Além do impacto dos três assassinatos e da falta de policiamento adequado, “é uma atividade estressante, cansa psicologicamente, há poucos servidores, a logística é difícil”, disse um servidor no Javari.
Com 8,5 milhões de hectares, o equivalente ao território de Portugal, a Terra Indígena Vale do Javari é a segunda maior do país. Nela há cerca de 15 registros de povos indígenas isolados, dos quais nove confirmados, o que é considerada a maior incidência do gênero no mundo. Na Frente há apenas dez servidores públicos da Funai em atividade. Ou seja, um servidor a cada 850 mil hectares. Somando os registros de isolados e as bases, há 22 frentes de trabalho possíveis, para apenas dez servidores.
Como consequência da pandemia da Covid-19, sob pressão de uma ação ajuizada pelo movimento indígena no STF (Supremo Tribunal Federal), a Funai contratou cerca de 85 colaboradores indígenas, mas os contratos são temporários e os salários, baixos.
Coordenador administra e apoia as equipes que fazem a vigilância do território
O coordenador da Frente é responsável pelas atividades de cinco bases da Funai instaladas na terra indígena: Ituí, Quixito, Jandiatuba, Figueiredo e Coari. A base do rio Curuçá está sob responsabilidade da coordenação regional do órgão em Atalaia. Além disso, é preciso dar atendimento a um acampamento, perto do rio Coari, de indígenas Korubo contatados em 2019 por uma expedição liderada por Bruno.
As tarefas de um coordenador da Frente envolvem proteção e monitoramento de ameaças aos indígenas isolados, localização de novas evidências, gerenciamento administrativo e articulação com outros órgãos públicos, como o Ministério da Saúde.
Por tabela, contudo, o coordenador da Frente e os servidores da Funai nas bases também enfrentam as constantes invasões ao território indígena, uma vez que caçadores e pescadores ilegais podem levar doenças ou atacar os isolados. O coordenador tem o papel de administrar e apoiar as equipes que fazem a vigilância do território.
De 2018 a 2019, a base da Funai na confluência dos rios Ituí e Itaguaí – a maior e mais próxima da cidade de Atalaia do Norte (AM), que fica na “boca” da entrada da terra indígena – foi atacada a tiros pelo menos cinco vezes. De acordo com as investigações das polícias Civil e Federal e com a denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, foi um grupo de pescadores que assassinou e ocultou os restos mortais de Bruno Pereira e Dom Phillips.
Na decisão que acolheu a denúncia, o juiz federal de Tabatinga (AM) Fabiano Verli escreveu a respeito do crime: “Com o tempo, hipóteses de rixa, desentendimento estritamente pessoal, interesses estritamente pessoais, tudo isso foi esmaecendo. Foi se fortalecendo cada vez mais a hipótese de atritos envolvendo pesca, caça, circulação, interesses etc, em terras no entorno de terras indígenas e dentro das próprias terras indígenas. Tudo sempre ligado aos índios enquanto tais. Bruno e Dom não eram representantes de empreendimentos lucrativos ou de interesses econômicos diretos, específicos. Bruno, mesmo licenciado, trabalhava como consultor em assuntos indigenistas. Nunca se afastou disso e era visto, talvez mais ainda, como encarnação do Poder Público na sua face voltada para o gerenciamento da convivência entre índios e o resto da comunidade nacional – objeto da Funai. No mínimo, um ativista de causas coletivas. Ativista é aquele que age. E agir é perigoso. Vários exemplos trágicos no Brasil mostram isso”.
Para dar proteção aos servidores da Funai na região, após os assassinatos de Bruno e Dom e sob pressão dos servidores e de duas comissões externas criadas pelo Congresso Nacional, o governo federal reforçou a presença da FN (Força Nacional) na região. Contudo, conforme apurou a Pública, a ação atribuída à FN é pontual: seus soldados permanecem dentro de duas, das quatro bases e evitam sair das unidades para, por exemplo, apreender e destruir os equipamentos dos pescadores e caçadores clandestinos. O papel principal da FN é resguardar os servidores e o patrimônio público. Nas cidades da região, às quais devem ir de tempos em tempos, os servidores da Funai circulam sem proteção policial. Foi num momento como esse o assassinato de Maxciel Pereira, a tiros, numa rua em Tabatinga.
A assessoria de comunicação da Funai, em Brasília, foi procurada pela Pública, mas não havia se manifestado até o fechamento deste texto. Caso se pronuncie, o texto será atualizado.
Texto: apublica.org.