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Cultura do cancelamento: “não estamos mais sabendo lidar com a frustração da opinião dos outros” diz especialista

Um novo e maléfico comportamento de internautas nas redes sociais fez surgir o termo cultura do cancelamento na internet, que se configura como ataques, xingamentos e ofensas a pessoas e personalidades nas redes sociais, com críticas pesadas e carregadas de ódio.

Em alguns casos, o cancelamento envolve a mobilização online de um grupo de pessoas que busca expor e condenar publicamente o comportamento de alguém em questão, muitas vezes provocando consequências profissionais ou pessoais, como a perda de empregos, contratos publicitários ou até mesmo amizades, em uma espécie de linchamento virtual.

Cultura do cancelamento: “não estamos mais sabendo lidar com a frustração da opinião dos outros” diz especialista. Imagem reprodução.

Para a psicóloga Juliana Galvão, que conduziu a coluna de saúde mental no BT, Movimente, a cultura do cancelamento revela intolerância e falta de respeito nas relações interpessoais.

“Embora seja uma relação virtual, continua sendo uma troca entre pessoas. A percepção da internet como terra sem lei e a normalização de rapidez nas interações contribui para isso, também. O cancelamento revela uma falta de comunicação. As mídias que poderiam ser esse espaço de incentivo ao diálogo, nesse caso, funcionam como catalisador do caos nas relações sociais. O cancelamento pode deteriorar a saúde mental. Como consequência, as pessoas podem apresentar quadros de depressão ou transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo”, explica a especialista.

O BT também conversou com o psicoterapeuta Leonardo Torres, que avalia que a cultura do cancelamento e do ódio gratuito nas redes sociais é um desserviço para o convívio social.

“Isso (o cancelamento) não promove nenhuma compreensão de viver em grupo. Cada vez mais estamos sendo menos civilizados, menos cidadãos, e isso me preocupa muito. A cultura do cancelamento e o ódio gratuito são os indícios que aparecem para a gente perceber que estamos cada vez mais desunidos. Existem vários aspectos que estão relacionados a isso, entre eles, o algorítmo, que hoje nos coloca em bolhas nas redes sociais, fazendo com que a gente só tenha opiniões iguais, e toda a opinião que for divergente acaba como se fosse uma opinião inimiga e que não deveria ser exposta, então a internet, as redes sociais, e como elas operam é um dos agravantes. Segundo agravante é que a gente está cada vez menos inteligente e menos empático, a população como um todo. Estamos cada vez menos nos aprofundando em temas importantes na política, no social, temas existenciais, e digamos que se junta a fome com a vontade de comer, ou seja, enquanto que o algorítmo nas redes sociais transforma numa massa com a mesma opinião, fazendo com que determinado grupo fique coeso e vinculados, acaba que as pessoas ficam cada vez menos inteligentes, sem olhar para o lado e considerar que sim, pode haver outras opiniões, e aí cai na ideia da empatia e auteridade. Ou seja, cada vez mais o outro que está do outro lado da rede social, o meu vizinho, ele é o meu inimigo se ele pensa diferente de mim”, disse.

Torres pondera que não vê a cultura do cancelamento como uma anomalia social, mas sim como algo normal associado à psicologia.

“Na psicologia, esse funcionamento de cancelar é natural, a gente tem conteúdos reprimidos no nosso inconsciente que nós não queremos demonstrar, e muitas vezes quando nós nos deparamos com o diferente, nós nos deparamos exatamente com esses conteúdos do nosso inconsciente, só que expostos no outro. É um termo que a gente chama de projeção na psicologia, no sentido de que se eu não tenho a empatia e inteligência de considerar que o outro também pode ter uma opinião, e que isso pode ter relação com os meus conteúdos reprimidos, que a gente chama de sombra na psicologia, eu perco a capacidade de me relacionar com isso, com este outro que tem uma opinião diferente. Cada vez mais eu vou me tornar superficial, cada vez mais eu vou me tornar burro, um idiota, que age pelos impulsos, como alguém que está longe do processo de civilização e do conviver social, fazendo com que todo mundo que seja diferente se torne inimigo, e é um grande problema isso. A questão é que nós não estamos mais sabendo lidar com a frustração da opinião dos outros”, pondera.

A psicóloga Juliana Galvão (à esquerda) e o psicoterapeuta Leonardo Torres (à direita) explicam e analisam a problemática cultura do cancelamento e do ódio gratuito nas redes sociais, que distancia a interação saudável entre as pessoas. Imagem reprodução arquivos pessoais.

CASO JÉSSICA VITÓRIA E O ÓDIO GRATUITO

Além da cultura do cancelamento, o ódio gratuito também é outro elemento prejudicial na interação no ambiente virtual. Em dezembro de 2023, o caso chocante da jovem Jéssica Vitória Canedo, mineira de 22 anos, que se suicidou depois de sofrer uma enxurrada de ataques e ódio gratuito de internautas, após páginas de fofoca divulgarem informações falsas de um suposto relacionamento amoroso dela com o humorista Whindersson Nunes.

Páginas como a Choquei, que tinha mais de 21 milhões de seguidores no Instagram à época, divulgaram a Fake News sem conformação de um nenhum dos lados envolvidos no boato e evidenciou as consequências do ódio gratuito e o cancelamento.

Para o psicoterapeuta, o caso Jéssica Vitória é muito complexo e envolve muitos fatores associados para tentar entender as consequências.

“O caso da Jéssica é muito complexo, a gente não vai conseguir, por exemplo, responder o que pode ter motivado essas Fake News e quem foi o idealizador dessa Fake News e suas intenções. Mas, a gente tem que olhar como uma fofoca, como uma notícia que garanta os likes (curtidas) para aquela página, como a Choquei. O que demonstra que, por um lado, alguns meios de comunicação estão funcionando muito mais em prol de curtidas, comentários e compartilhamentos, do que em prol da notícia e do comprometimento com a verdade, isso é um grande problema. Esses portais parecem não conhecer as consequências disso (das Fake News), tanto que o caso da Jéssica foi uma consequência extrema disso. Esses blogs, páginas, devem ser responsabilizados sim nesse caso da Jéssica”, avalia.

Com relação à análise do caso Jéssica relativo à sociedade, Torres destaca que a fofoca é a válvula de escape para o cancelamento e o ódio gratuito nas redes sociais.

“A fofoca aciona aqueles conteúdos reprimidos no nosso inconsciente para que as pessoas sintam uma satisfação. Em outras palavras, a sociedade, os indivíduos fofocam exatamente para que esses conteúdos reprimidos, como por exemplo, casos de traição, atitudes estranhas de alguma celebridade, façam com que determinada pessoa ganhe um lugar para esse estimular esse conteúdo reprimido. Ele (as pessoas) consigam ver esse conteúdo reprimido ganhe um lugar, no caso as páginas de fofoca, onde o indivíduo consegue ver esse conteúdo reprimido e, ao mesmo tempo, colocar em algum lugar para afirmar que esse conteúdo, essa fofoca não é sobre mim, é sobre o outro. Quem trai é o outro, quem mente é o outro, e não sou eu, este outro deve ser castigado por isso. Por isso que a gente tem tanto ódio gratuito na internet.

E completa:

“Acontece que a gente não está falando de duas, três pessoas, estamos falando de milhões de pessoas. Milhões de pessoas que não querem se conhecer, não querem aceitar que tem partes boas e partes ruins nela, como qualquer outro ser humano. E aí, tudo o que estiver relacionado a uma imoralidade é colocado neste outro que foi veiculado numa página de fofoca, e ali aparece o conteúdo reprimido de uma forma segura para a mente desse indivíduo, e aí ele vai poder destilar o próprio ódio neste conteúdo. As pessoas que atacaram a Jéssica não estavam falando da Jéssica, estavam falando delas mesmas e não perceberam isso. A Jéssica, coitada, ele foi bode expiatório, ela foi um alvo desse ódio que está inserido em todas as pessoas da sociedade. Não só as páginas de fofoca, mas cada um que seguia essas páginas e cada um de nós, brasileiros deveríamos colocar a mão no coração e entender que essas páginas de fofoca só existem porque eles têm público, ou seja, existe uma co-responsabilidade da população inteira nessa divulgação de Fake News, de fofoca, e que nós (sociedade) devemos sim, tentar tomar consciência disso para que isso não se repita mais. Esse caso da Jéssica foi muito triste, eu fiquei muito abalado, e nós não estamos mais livres das Fake News”, pondera.

Por outro lado, a psicóloga Juliana Galvão, percebe que algumas pessoas têm preferido agir com cautela e pouca manifestação de opiniões nas redes sociais, em função da tensão provocada pelo cancelamento.

“O cancelamento pode deteriorar a saúde mental e as pessoas podem apresentar quadros de depressão ou transtornos de estresse pós-traumático. Muitos usuários acabam criando uma personalidade diferente no universo das redes sociais. Ou seja, os impactos vão muito além daquele que sofreu o linchamento virtual. Percebe-se tensão nos usuários sobre o que postar e escrever. Em relação ao suicídio da Jéssica, é multifatorial, mas a vulnerabilidade emocional expõe mais ao risco. Por isso, é fundamental que hajam ações governamentais para a regulamentação de conteúdos mas redes sociais”, destaca.

SOLUÇÕES PARA ACABAR COM O CANCELAMENTO

Os especialistas concordam que deve-se regulamentar com urgência os conteúdos e o acesso às mídias digitais, sobretudo como forma de controle e monitoramento junto às crianças e adolescentes.

“Ações governamentais são urgentes para regulamentação e análise dos limites saudáveis do conteúdo para minimizar a exposição sem medida e limites, pois é prejudicial. Daí é necessário haver um controle sobre tempo e tipo de material acessado, até pensando nos algoritmos. Outro fator é pensar bem antes de escrever ou comentar algo, isso vale para a vida virtual e para a vida real. Responsabilidade ao publicar e comentar é de cada um, o diálogo não pode se perder. A internet pode ser um espaço rico de interação e aprendizado, algo mais positivo para as relações sociais. Sem isso, podemos ver índices de adoecimento mental e vulnerabilidade emocional aumentado. O debate também precisa chegar na escolas, praças, bares para conscientizar sobre a necessidade de conversas e comunicação, para assim não prejudicarmos a qualidade de vida e saúde dos usuários das mídias”, enfatiza Juliana Galvão.

“Eu não sei se é possível acabar com a cultura de cancelamento e ódio gratuito nas redes sociais porque isso é natural. Enquanto nós brasileiros não aceitarmos que estamos separados e frustrados com opiniões alheias e numa atitude infantil da mente humana diante da vida e da complexidade do fenômeno social, da complexidade da cidade, enquanto a gente não aceitar isso, a cultura do cancelamento e do ódio gratuito vão continuar. O que eu sugiro que o autoconhecimento no âmbito do indivíduo, começar a colocar a mão no coração, ter empatia, refletir, tentar buscar a inteligência, no sentido de interligar a ideia de que existem opiniões diferentes”, alerta o psicoterapeuta Leonardo Torres.

E completa:

“Nem tudo é verdade na internet, eu, você, devemos nos aprofundar e pesquisar as fontes e referências, já que as Fake News estão cada vez mais frequentes. Então existe aí uma parcela de responsabilidade grande de cada indivíduo. Agora, as medidas governamentais, é a regulação das mídias que vem ganhando força, isso é muito importante exatamente para tentar evitar essa cultura de ódio e disseminação de ódio e Fake News. Também acredito que as Fake News devem ser cada vez mais responsabilizadas e entrarem como crime de fato no âmbito jurídico, porque essas mentiras podem custar vidas, como foi a vida da Jéssica, e vão precisar de quantas vidas para a gente perceber que espalhar e promover Fake News é um crime muito grave. A genta sabe muito bem que, considerando uma população inteira, quando uma notícia dessa sai, a pessoa é carimbada com as características que a notícia, a fofoca divulgou. Então, temos que tomar muito cuidado, não é brincadeira, a mídia é uma arma e a gente tem que saber usar ela”.

REDES SOCIAIS: A NOVA DROGA GLOBAL

Ainda na perspectiva de analisar os efeitos das redes sociais sob as pessoas, Leonardo Torres argumenta que, de acordo com a velocidade em que se consome o conteúdo nas mídias sociais, o cérebro recebe mais dopamina.

“O que eu gostaria que realmente acontecesse é que houvesse um tempo mais lento entre as pessoas e as redes sociais. Hoje, cada vez mais as redes sociais estão querendo mais velocidade, mais aceleração. A cada passada, por exemplo, de um reels no Instagram ou um vídeo no TikTok, o cérebro ganha um pouco mais de dopamina e isso acaba fazendo com que as pessoas se viciem. Ou seja, não somos mais nós que utilizamos as rede sociais, é ela que nos utiliza. Não à toa, estamos tão viciados que chamamos o indivíduo de usuário da rede social. Isso é um grande problema, não está saudável essa relação, nem um pouco. O que eu gostaria que acontecesse é um tempo lento para a gente entrar nas redes sociais, no sentido de aprofundamento, sair dessa coisa de 3 segundos, 10 segundos e ir para um conteúdo novo faz com que o indivíduo fique cada vez mais superficial, cada vez aceite mais o que ele está vendo e não faz com que o indivíduo se aprofunde refletindo e buscando a veracidade sobre a notícia e raciocinando sobre ela. Isso é muito difícil de acontecer porque eu não vejo nenhuma perspectiva de que isso aconteça no futuro, por enquanto, a não ser que o mercado veja uma oportunidade de negócio nesse ambiente de aprofundar mais o conteúdo. Mas deve-se mudar exatamente isso, a ideia de tempo, estamos utilizando muito as redes sociais, cerca de 8 horas na frente das telas, e isso é um grande problema, porque, 30 minutos, segundo algumas pesquisas de anestesiologia, 30 minutos de uso de uma tela já dá o mesmo efeito de uma droga chamada de midazolam, que é um pré-anestésico”, adverte.

E complementa:

“Então o que deveria mudar é o tempo, tanto de uso de tela das redes, como também de cada conteúdo, de quanto tempo eu fico em cada conteúdo. Muitas vezes eu pergunto para a pessoas: “quais foram os últimos três livros que você leu?”. As pessoas me respondem, porque elas tiveram tempo de aprofundamente, de leitura desses três livros, e elas podem contar as histórias desses três livros. Agora quando eu pergunto “quais foram as últimas três publicações que você viu na rede social, ninguém vai saber. E olha que a publicação é muito mais superficial e conta uma história muito menor do que um livro. Acontece que está tão acelerado que a gente não lembra, a gente tá tão anestesiado que a gente não lembra, e isso é um grande problema. E se não dá pra desacelerar nas redes sociais, a consequência é essa massa de indivíduos idiotas, massa de indivíduos inúteis, e não sou eu que falo isso, quem diz isso é um autor chamado Yuval Noah Harari, no livro Homo Deus. Ele fala que os algoritmos, as máquinas e inteligências artificiais vão tirar cada vez mais as profissões, as reflexões, a forma de se viver das pessoas e vai, digamos, pressionar o governo a ter que pagar uma pensão, a ter que pagar um sustento de vida para uma massa de inúteis que vão ficar fazendo nada, que não buscar nada na vida. Ou seja, é um cenário distópico (irreal) se a gente não pegar as rédeas e começar a refletir e repensar o mundo, e já estamos atrasados para isso. A ignorância que a gente está enfrentando hoje é um grande problema, é o maior problema que a gente está enfrentando hoje. No geral, é isso, falta de empatia, superficialidade, ignorância que a gente está vivendo hoje”, finaliza Torres.