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Dono de fazenda onde Pataxó foi morto pediu reintegração de posse no dia seguinte ao crime

Jovem foi assassinado no começo do mês em ocupação feita pelos indígenas diante de demora na demarcação do território

Foto: Reprodução.

Via Agência Pública, por Anna Beatriz Anjos, Rafael Oliveira. Colaboração de Bruno Fonseca.

Na madrugada do último dia 4, o adolescente Pataxó Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, foi assassinado por pistoleiros que atacaram uma ocupação iniciada por sua comunidade poucos dias antes na fazenda Therezinha, em Prado, no sul da Bahia. Já no dia seguinte ao atentado, Airson Celino Gomes, dono da propriedade, conhecido na região pelo apelido “Nem”, entrou na Justiça contra três lideranças Pataxó pedindo reintegração de posse do imóvel.

A fazenda de Gomes está dentro dos limites da Terra Indígena (TI) Comexatibá, cuja demarcação está travada desde 2015, quando o relatório de identificação da área foi publicado. Depois disso, o processo recebeu uma chuva de contestações por parte de fazendeiros ligados sobretudo ao cultivo de eucalipto, que domina a região, e de empresários do setor hoteleiro, entre outros — 156, segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O ataque, que envolveu uso de munições de alto calibre e até bombas de gás lacrimogêneo, também deixou ferido outro indígena de 16 anos, que está fora de perigo. Nos dias anteriores, um áudio que circulou nos grupos de WhatsApp locais já antecipava uma possível tragédia. “Já que esses policiais, esses veado, não tá querendo resolver a ronda aí, nós vai descer, com nosso arrastão, bota só de fuzil no peito desses veado desses índio. Separa só o que é de criança, o que é de homem vai cair tudo na bala [sic]”, afirma uma pessoa não identificada.

Granada de gás lacrimogêneo, de uso exclusivo das Forças Armadas e da polícia, usada no ataque que matou Gustavo. Foto: Reprodução Povo Pataxó.
Várias munições deflagradas foram recolhidas por policiais que fizeram a perícia no local do ataque que matou Gustavo, ainda no dia 4. Foto: Reprodução Povo Pataxó.

Ao longo dos últimos anos, os indígenas de Comexatibá realizaram uma série de retomadas na tentativa de fazer avançar o processo de reconhecimento de seu território pelo governo federal. As duas últimas ocorreram na região do rio Cahy, considerado sagrado para os Pataxó: em 1º de setembro, na propriedade de Nem Gomes e, em 22 de junho, em uma fazenda vizinha, chamada Santa Rita III, também localizada no interior da TI.

Há ocupações ainda na TI Barra Velha do Monte Pascoal, limítrofe à Comexatibá, cujo processo demarcatório está paralisado desde 2008. Embora haja decisões judiciais recentes garantindo a permanência dos indígenas nas ocupações, lá também aconteceram ataques a tiros nos últimos dias, inclusive em aldeias já consolidadas, que não estão em áreas de retomada. Uma retomada feita pelos Pataxó desse território na fazenda Brasília, em junho, foi expulsa no mesmo dia por uma carreata de fazendeiros. A região das duas TIs, onde aconteceu o primeiro contato entre os colonizadores portugueses e os povos originários, concentra uma das principais áreas remanescentes de Mata Atlântica do Nordeste brasileiro.

A ação movida por Nem Gomes contra as três lideranças e a Funai ainda aguarda decisão no TRF-1. A defesa do fazendeiro pede uma decisão liminar de reintegração de posse e alega que o imóvel rural não incide sobre a TI, mas levantamento da Agência Pública com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da Bahia mostra o contrário.

Foto: Bruno Fonseca/Agência Pública.

Lideranças temem novos ataques

O clima na região é de tristeza pela morte de Gustavo e medo de novos ataques, relataram lideranças Pataxó à reportagem. “Estou sem dormir a noite toda esperando os bandidos chegarem para atacar a gente”, disse uma delas, que pediu para não ser identificada por temer represálias.

A liderança explica ainda que, com a demora na demarcação, seus territórios estão sendo degradados, o que cria entre os indígenas uma urgência ainda maior para as retomadas. “As matas estão sendo devoradas; a biodiversidade, que é rica aqui, está sendo destruída também. Estamos perdendo nosso alinhamento, nossa força, porque para nós essa terra é nossa carne, essas águas são nosso sangue e essa floresta é nosso espírito. Se acabar isso, acaba tudo para nós, Pataxós. Então estamos resistindo, lutando. E sendo perseguidos por isso”, destaca.

Na última terça-feira (13), uma força-tarefa criada pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia se reuniu em Porto Seguro, a cerca de 200 km de Prado, para planejar ações com o objetivo de “ampliar as ações ostensivas nas aldeias” e “apoiar na identificação e prisão dos envolvidos” na morte de Gustavo, de acordo com nota do órgão. No mesmo dia, lideranças Pataxó estiveram em Brasília e entregaram uma denúncia à 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF), que atua junto aos povos indígenas e comunidades tradicionais, solicitando sobretudo a presença da Polícia Federal (PF) nos territórios. Na quinta-feira (15), junto a indígenas de outros povos, os Pataxó participaram de uma marcha na capital federal contra a escalada da violência em seus territórios – além de Gustavo, desde o início do mês, três Guajajara foram mortos no Maranhão.

Nos dias seguintes ao assassinato, outro áudio de autor desconhecido rodou pelos grupos de WhatsApp da região com o seguinte conteúdo: “[Invadiram a fazenda] que é de Nem Gomes. Ele botou mais bala pra dentro, e vai matar mais gente, porque Nem Gomes não tem piedade, não, o que Nem Gomes tem é dinheiro, gado no pasto e pistoleiro. É o ramo dele mandar matar”.

Procurado pela reportagem, Nem Gomes deslegitimou o movimento de retomadas, argumentando que em sua propriedade há apenas “uns malandros se passando por indígenas”. Ele se referiu ao ataque que vitimou Gustavo como “uma disputa de território” entre os ocupantes da fazenda. “Tem outra [fazenda] invadida do outro lado [referindo-se à Santa Rita III]. Uns queriam ficar do lado de cá, outros do lado de lá, e dizem que brigaram”, narrou. Quando pedimos mais explicações, ele orientou que fizéssemos contato com seu advogado, que não respondeu às nossas mensagens até o fechamento desta reportagem.

Lideranças Pataxó pediram justiça por Gustavo em manifestação em Brasília na quinta-feira (15). Foto: Cimi.

Ex-A Fazenda viajou com equipe da Record para denunciar “invasão”

Um ex-participante do reality show A Fazenda, da TV Record, também se manifestou sobre os conflitos entre Pataxó e não indígenas na TI Comexatibá e fez coro aos argumentos de Nem Gomes. Trata-se do jornalista e influenciador Juliano Ceglia, que afirmou em seu perfil do Instagram que a fazenda Santa Rita III, de sua família, foi “invadida” por “grupos de criminosos armados” que “usam a causa indígena, até se fantasiam às vezes como índios, e invadem as terras”. A suposta invasão foi tema de nota da editoria de celebridades do portal Metrópoles no fim de agosto, na qual Ceglia diz que 15 homens fortemente armados expulsaram os funcionários da propriedade “sob ameaça de morte”.

Pouco tempo depois, na semana anterior ao assassinato de Gustavo no imóvel vizinho, o influencer esteve na Santa Rita III com uma equipe do programa Domingo Espetacular, também da TV Record, conforme revelou em seu Instragam no dia 2 de setembro. Nos stories, deu mais detalhes: “Vim aqui junto com a equipe de reportagem do Domingo Espetacular e eles estão mostrando justamente isso, as provas, o que a gente tem passado com isso tudo”, relatou. A matéria anunciada por Ceglia ainda não foi ao ar, mas a afiliada local da emissora fez reportagem de 12 minutos abordando o tema. Procurada, a TV Record não se manifestou sobre o assunto.

Antigamente conhecida como “Pequi Velho”, a Santa Rita III foi retomada pelos indígenas em junho deste ano. De acordo com carta pública divulgada pelas lideranças Pataxó na semana passada, a ocupação ocorreu depois de Rodrigo Carvalho, dono da propriedade e primo de consideração de Ceglia, ter desistido de um acordo firmado verbalmente com os indígenas em junho, em que teria concordado em desocupar a área. Ele teria voltado atrás após ações de outros fazendeiros da região. Raphael Carvalho, irmão de Rodrigo nega que qualquer acordo tenha sido feito com os indígenas. Ele declarou ter ingressado na Justiça com pedido de reintegração de posse do imóvel, negado com base em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que impede ações do tipo contra indígenas durante o período de pandemia, o que ele considera “um entendimento errado”.

Em 1º de setembro, os indígenas publicaram nota denunciando que estavam sendo vigiados por drones, que teriam decolado da fazenda Therezinha — segundo lideranças, a retomada dessa propriedade, dias depois, teria ocorrido em reação a isso. Na entrevista ao Metrópoles, Ceglia havia contado que sua família fez um sobrevoo na área com um drone e que os indígenas atiraram contra o aparelho. Raphael Carvalho alegou que o drone foi utilizado para a “realização de levantamento de prejuízos ambientais causados pelo incêndio criminoso promovido pelos invasores”. O fato a que ele se refere aconteceu em 26 de junho, quando os Pataxó gravaram vídeo após terem colocado fogo em cascas de eucalipto, conforme disseram à imprensa à época, para protestar contra a “destruição” causada pelo cultivo.

A Santa Rita III — onde os Carvalhos cultivam eucalipto e pimenta-do- reino, além de criarem gado — aparece no levantamento fundiário realizado no âmbito do processo demarcatório da TI Comexatibá como sendo de Normando Carvalho, pai de Rodrigo e Raphael. Normando, já falecido, teria expulsado violentamente a indígena que habitava o local, conhecida como dona Julice, em 2002, de acordo com informações que aparecem no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da terra.

Raphael Carvalho afirmou desconhecer o fato. Disse ainda que os indígenas que estão em sua fazenda “são invasores contumazes e reincidentes”, citando outras ocupações realizadas pelos Pataxó em anos anteriores. Uma delas ocorreu em uma unidade do ICMBio em 2014, quando havia um conflito entre a comunidade, que pressionava pela demarcação da TI Comexatibá, e o órgão, responsável pela gestão do Parque Nacional do Descobrimento (PND), que tem partes sobrepostas à TI — em 2018, um termo de compromisso foi assinado pelos indígenas e pela autarquia para pacificar a questão. Outra se deu naquele mesmo ano na Diretoria Regional de Educação, em Teixeira de Freitas, quando os Pataxó protestavam por melhorias na educação.

Em um diálogo do Instagram ao qual a reportagem teve acesso, Ceglia afirma também que o estudo de identificação da TI Comexatibá teria sido feito “por uma amante de um funcionário da Funai” e diz para seu interlocutor que “vem muita por aí se prepara [sic]”. O diálogo ocorreu em 3 de setembro, apenas um dia antes do assassinato da morte do jovem Pataxó.

Ceglia afirmou à Pública que foi procurado pelo Domingo Espetacular depois que foram ao ar outras matérias sobre o assunto. “Aí o Domingo Espetacular me procurou, perguntou se eu poderia ir lá com eles para gravar e contar o que aconteceu e a gente foi”, contou. Além de contatos por telefone e WhatsApp, ele e Raphael Carvalho também encaminharam nota respondendo às perguntas apresentadas pela reportagem. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui. Os materiais que continham dados pessoais foram suprimidos.

No meio do conflito, sem o apoio da Funai

Em meio aos conflitos na região, a Funai anunciou internamente que fechará a unidade dedicada a atender os Pataxó da TI Comexatibá, segundo informações obtidas pela reportagem. Criado em 2018, o Núcleo de Apoio Técnico de Prado (NAT-PRA) já vinha enfrentando dificuldades: em abril deste ano, uma de suas duas únicas servidoras foi dispensada. Isso significa que, nos últimos cinco meses, apenas uma funcionária ficou responsável pela assistência de cerca de 800 indígenas em sete aldeias na TI.

As lideranças locais solicitaram que a servidora dispensada permanecesse no cargo, mas o órgão indigenista reagiu à demanda informando que o núcleo será extinto até o fim de outubro e que os indígenas atualmente atendidos pelo NAT-PRA passarão a recorrer à Coordenação Técnica Local de Itamaraju, município localizado a 120 km das aldeias.

A Funai não se manifestou sobre o assassinato de Gustavo Silva da Conceição ou sobre os ataques sofridos pelos Pataxó. Pelo contrário: em 22 de agosto, havia publicado nota em que critica os indígenas, após terem retido como protesto um veículo utilizado pela servidora responsável pelo NAT-PRA. Na nota, o órgão diz não “coadunar com nenhum tipo de conduta ilícita” ou exercer “tutela orfanológica de indígenas”, afirma ter protocolado pedido de busca e apreensão do veículo e que estava contribuindo “para apuração de potencial repercussão criminal” do caso.

A reportagem enviou à Funai questionamentos sobre o fechamento do NAT-PRA, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.

Povo Pataxó faz homenagem ao adolescente Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, assassinado por pistoleiros. Foto: Reprodução Povo Pataxó.

Demora na demarcação favorece violência

O cenário de violência enfrentado pelos Pataxó do sul da Bahia se agravou nos últimos meses, quando eles decidiram realizar novas retomadas territoriais, mas os ataques não são de hoje. Segundo dados do “Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil — dados de 2021”, do Cimi, cinco Pataxós da TI Comexatibá foram mortos no ano passado, todos vítimas de disparos por arma de fogo. Os autores e a motivação dos crimes não foram identificados e os casos estavam sob investigação policial. A organização registrou também outras quatro mortes na TI Barra Velha. Ao todo, foram 14 assassinatos de indígenas na Bahia somente em 2021.

Para Domingos Andrade, membro da coordenação colegiada do Cimi Regional Leste, a paralisação do processo demarcatório faz com que as famílias, que estão se ampliando numericamente, fiquem restritas a uma área muito pequena. “Isso vai afetando tanto a questão da moradia, do espaço físico, a questão do ritual, a questão da soberania alimentar. E a única forma que eles têm de pressionar é fazendo esses movimentos pacíficos de retomada. Esse clima de insegurança no campo só vai cessar quando o governo tomar definição se demarca ou não demarca”, aponta.

Estudiosa dos Pataxó e coordenadora do Núcleo de Estudos Interculturais e da Temática Indígena da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a professora Maria Geovanda Batista ressalta que “a colonização, para esses povos, nunca acabou”, mas se aprofundou no atual governo. “São duas décadas de acompanhamento desse entorno. Eu não me lembro de nenhum ano em que não teve um conflito. No nosso centro de documentação na Uneb, tem um cartaz do MPF fazendo audiência pública em Prado para fazer cessar a violência, que estava alta em 2002”, relata a professora dos cursos de licenciatura intercultural em educação escolar indígena e de pedagogia intercultural indígena na Uneb.

Além da Comexatibá, a vizinha TI Barra Velha do Monte Pascoal também está com seu processo de demarcação paralisado e enfrenta interesses de terceiros não indígenas. Localizado na cidade de Porto Seguro (BA) e também habitado pelos Pataxó, o território foi identificado pela Funai, com publicação do RCID em fevereiro de 2008. Trata-se de um reestudo, já que a área inicialmente homologada em 1991 abrange apenas 9 mil hectares e o processo demarcatório feito na época não contemplou boa parte do território ocupado pelo povo indígena.

A demora na conclusão da demarcação pelo governo federal aumenta a vulnerabilidade dos territórios. Um exemplo disso é que as TIs dos Pataxó na região estão entre as mais afetadas pela publicação da Instrução Normativa nº 9 (IN09) da Funai, de abril de 2020, que permitiu certificações e registros de fazendas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) federal dentro de TIs ainda não homologadas — exatamente o caso de Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal. Segundo levantamento do Cimi, nos primeiros meses de validade da medida, foram registradas 13 e 41 certificações nas duas TIs, respectivamente.

Em março de 2021, a Justiça Federal na Bahia atendeu a um pedido do MPF local para suspender os efeitos da IN09 no estado. Com a decisão, as certificações e registros feitos com base na normativa deveriam ter sido anulados. Levantamento feito pela Pública em julho deste ano, porém, constatou que ao menos 13 fazendas sobrepostas à TI Comexatibá seguiam certificadas, além de 20 propriedades dentro da TI Barra Velha do Monte Pascoal.

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

Texto: apublica.org.