Pelo menos três meninas indígenas de 9 a 12 anos do povo Jamamadi que vivem em Lábrea, no sul do Amazonas, foram diagnosticadas entre 2019 e 2021 com o vírus HPV, um indício de que as crianças podem ter sofrido violência sexual.
Os casos foram reportados para a coordenação regional da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), então sob comando do governo de Jair Bolsonaro (PL), mas as suspeitas não foram investigadas, nem as crianças receberam o devido tratamento.
O papilomavírus humano (HPV) é sexualmente transmissível e altamente contagioso. Nas mulheres, é o principal causador do câncer de colo de útero. Em crianças maiores, o contato sexual é a forma mais provável de contaminação.
No caso das três meninas Jamamadi, todas apresentaram lesões dentro da boca compatíveis com infecção por HPV, segundo laudos médicos e documentos obtidos por O Joio e O Trigo e a Repórter Brasil.
Em uma delas, havia também outros sinais indicativos de violência sexual. “Foi constatada secreção transvaginal que caracteriza outra DST (Doença Sexualmente Transmissível)”, indica laudo de 2019, assinado por médico da UBS de Lábrea, a respeito de uma menina Jamamadi de 11 anos.
O laudo faz parte de um relatório do Conselho Tutelar de Lábrea endereçado ao então coordenador local da Funai, Luiz Fernandes de Oliveira Neto, que comandou a sede regional entre 2014 e janeiro de 2020.
Segundo o relatório, tanto a criança de 11 anos como a irmã dela, de 9, estavam infectadas e já tinham iniciado o tratamento. O conselho sugere que o caso seja acompanhado pelo órgão em parceria com a Funai. No entanto, outro documento obtido pela reportagem informa que os cuidados médicos foram interrompidos, pois os pais decidiram levar as irmãs de volta para a Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti, onde vivem.
O terceiro caso foi identificado em 2021, quando uma adolescente de 12 anos foi diagnosticada durante consulta odontológica dentro da aldeia.
As informações sobre esse caso constam de ofício interno da Funai, de 2021, no qual a área técnica do órgão informa à coordenação regional sobre os três episódios. Esse documento foi assinado um dia antes de ser nomeado um policial militar para coordenar o escritório da Funai em Lábrea, o PM de Rondônia Manoel Arnóbio Teixeira Alves.
No governo Bolsonaro, a Funai esteve a maior parte do tempo sob chefia do delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, homem de confiança do ex-presidente e que garantiu uma gestão anti-indígena do órgão. No seu mandato, várias coordenações regionais foram ocupadas por militares ou policiais, sobretudo na Amazônia, o que rendeu críticas de indigenistas e entidades por falta de experiência dos indicados para os cargos.
Na coordenação regional em Lábrea, Oliveira Neto foi substituído pelo tenente do Exército Cássio de Oliveira Pantoja, que depois deu lugar ao PM Teixeira Alves. As investigações sobre os casos não avançaram nesse período, segundo apurou a reportagem junto a servidores da Funai.
Procurado, Oliveira Neto afirmou que deu seguimento à denúncia internamente e que esteve na UBS para verificar a situação junto ao conselho tutelar e a um representante da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde). “Como a Funai não integra o sistema de Justiça, fizemos o encaminhamento no sentido de que as instituições efetivamente responsáveis –- a Sesai e o próprio Conselho Tutelar –- dessem andamento ao caso”.
A Sesai, porém, diz que não foi notificada e que o distrito regional de saúde (DSEI Médio Purus) não localizou qualquer denúncia sobre os casos. O órgão afirma possuir um protocolo para essas situações, com ações de acolhimento e assistência. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.
A reportagem não conseguiu contato com Manoel Arnóbio e Cássio Oliveira Pantoja.
O conselho foi procurado para comentar o caso, mas não respondeu quais ações foram tomadas. Além de alertar a Funai, o conselho tutelar deveria ter comunicado o Ministério Público Federal e a Polícia Civil. O MPF não respondeu à reportagem. Já a secretaria de segurança pública do estado confirmou que não houve registro de boletim de ocorrência sobre os casos.
O governo do Amazonas, por meio da secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, informou que não foi comunicado sobre o caso das crianças Jamamadi. A íntegra pode ser lida aqui.
As lesões descritas pelos laudos, dentro da cavidade oral, e a idade das meninas afetadas, indicam que os casos “são altamente suspeitos para violência sexual”, afirma a médica pediatra Luci Pfeiffer, presidente do Departamento de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
“Tem que pesquisar a violência sexual, não existe outra possibilidade. Se a família impede [o atendimento], a lei tem que agir”, diz.
Ela aponta várias falhas no atendimento às meninas Jamamadi, como a falta de exames ginecológicos e laboratoriais – para determinar quais germes as afetavam e possíveis outras violências –, além da falta de atenção psicológica, por meio de escuta especializada, para investigar o histórico das crianças. Segundo Pfeiffer, o conselho tutelar tem a obrigação de comunicar o caso para o Ministério Público, além de fazer um boletim de ocorrência.
Casos de violência contra crianças e adolescentes, incluindo violência sexual, são regulados pela lei 13.413/2017. De acordo com Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a lei prevê que nos casos de suspeita de abuso sexual, o Conselho Tutelar deve encaminhar a criança para atendimento médico, para uma escuta protegida, acionar o Ministério Público e registrar um boletim de ocorrência. “É o que está previsto nas atribuições do Conselho, no artigo 136”, diz. Quando as vítimas são crianças indígenas, a Funai e a Sesai devem ser acionadas, e ambas devem acompanhar o processo de escuta protegida, afirma Alves.
Já a Funai, ao receber a denúncia, deve acompanhar o caso e direcionar para os órgãos de apuração. Além disso, deve verificar se o Conselho Tutelar remeteu o caso para investigação. “Na omissão do Conselho, a Funai pode encaminhar a denúncia para a delegacia e fazer o boletim de ocorrência, como órgão que zela pelos direitos e garantia dos povos indígenas”, diz. O servidor que não toma tais providências, afirma o advogado, “pode responder por prevaricação”, que é quando um funcionário público não cumpre suas funções. “É preciso apurar”, afirma.
Influência religiosa
Outro ofício da Funai obtido pelo Joio e a Repórter Brasil informa também que os servidores do órgão e da saúde indígena (Sesai) estão enfrentando dificuldades para atuar nas aldeias Jamamadi em razão do missionário religioso Steve Campbell, da igreja Greene Baptist Church.
Campbell frequenta as aldeias Jamamadi desde a década de 1960, mas foi expulso pela Funai em 2018, após liderar uma expedição com alguns Jamamadi para alcançar o povo isolado Hi-Merimã. O ato o colocou no alvo de uma investigação do Ministério Público Federal, pois representa uma violação aos direitos dos indígenas de manterem suas tradições e costumes, o que inclui o isolamento, segundo a Constituição e tratados internacionais.
Campbell vive hoje na área urbana de Lábrea, mas segue exercendo influência na comunidade. Servidores que trabalham no município dizem, sob anonimato, que um aspecto da desestruturação causada pelo missionário é o conflito entre gerações, já que Campbell apoia lideranças mais jovens, que têm melhor domínio do português e de tecnologias digitais, o que acaba deslegitimando os mais velhos.
Para esses servidores, o religioso tem usado seu poder na comunidade para pressionar o governo brasileiro a permitir seu retorno ao território Jamamadi.
Com isso, o cuidado com a saúde ficou em segundo plano. Durante a campanha de vacinação contra a Covid, em fevereiro de 2021, os Jamamadi chegaram a receber as equipes de saúde com arcos e flechas. Além disso, casos graves também ficam sem atendimento, como o das crianças infectadas pelo HPV.
“Os Jamamadi falam que não vão permitir uma ação [da saúde indígena] nas aldeias enquanto o Steve não voltar”, afirma o indigenista e servidor da Funai Daniel Cangussu, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus quando Campbell foi expulso da terra indígena, em 2018.
A reportagem esteve na casa de Campbell para solicitar uma entrevista. O missionário negou o pedido, sob a alegação de que receia que suas declarações sejam distorcidas. Disse, também, que seu advogado o orienta a não dar entrevistas.
*Com informações de Brasil de Fato