Antes de começar a falar desse que é mais um atentado contra a Amazônia e seus povos, vou passear um pouco na história de resistência do nosso rio Tocantins. Nosso porque eu nasci e fui criada nesse rio, que me salvou muitas vezes. Salvou-me da fome e deu de comer a meus pais e meus dez irmãos e irmãs. Salvou-me a primeira vez quando nasci prematura e quase sem vida e meu pai me banhou nele e pediu por minha vida para a mãe d’água. Devo muito a esse rio, inclusive a minha própria existência. Diante disso, o texto que vem abaixo está carregado de sentimentos que tenho pelo meu rio, sendo impossível não escrever em primeira pessoa essa minha relação com o Tocantins e com os rios da Amazônia.
1613. O nosso gigantesco Rio Tocantins era a casa comum de milhares de nativos – Pacajá, Parijó e Camutá, com suas malocas que se estendiam nas beiras dos furos e igarapés. Tucantin ou Tucanotin, na língua nativa significava “tucano de peito branco”, era a fonte de vida para esses que existiram antes de nós e pertenciam a grande Nação Tupinambá. Até que o equilíbrio foi tragicamente rompido pela guerra sangrenta e desigual dos europeus contra os nossos povos. As águas limpas do Tocantins foram tingidas de sangue e se iniciou um longo período de extermínio sob o peso da espada e da cruz que transformou aquelas populações originárias em caboclos ribeirinhos, tirando deles o direito nem que seja no íntimo de evocar seu passado originário de guerreiros ancestrais.
1984. Erguida a um preço descomunalmente alto, de 10 bilhões de dólares, a usina hidrelétrica de Tucuruí, à jusante dos Municípios como Cametá e Baião, prendeu as águas volumosas do Tocantins para, por meio de suas turbinas, gerar energia abundante e barata para os grandes projetos minerários que a ditadura militar (1964-1985) implantaria em solo paraense, com especial destaque para o projeto Grande Carajás, explorado pela Vale do Rio Doce, à época estatal.
Como uma das obras que simboliza o tal “Brasil Grande”, a Usina de Tucuruí causou enormes impactos socioambientais, sentidos imediatamente pela população ribeirinha – majoritariamente de ascendência indígena que os séculos de colonização haviam “caboclizado“ – que assistiu da noite para o dia o sumiço dos peixes, sua mais tradicional fonte de subsistência.
ESTE RIO É NOSSO
Nasci na beira do Tocantins, Cametá. Lá, meus avós e os avós dos meus avós viveram em comunhão com a natureza. O sustento das famílias – pobres, mas orgulhosas de nossas tradições – foi sempre tirado dos rios e das matas. Mapará, Acari, sarda, jacundá, camarão e tantos outros peixes da água doce que formavam par perfeito com o nosso açaí e farinha sagrada, como parte indispensável da cadeia alimentar de toda a comunidade. Tudo isso mudou em pouco tempo. Minha família sofreu na própria pele a escassez do peixe e a completa desorganização do modo tradicional de vida naquela região por conta dos impactos causados ao Tocantins com a construção da barragem, sem contar a contaminação do mapará que passou a surgir um tipo que tinha cheiro diferente, provocando diarréia e vômito, e até matando pessoas, mas isso é tema para outro capítulo sobre barragens.
O progresso prometido não passou de mais uma promessa do capital. O sonho de prosperidade logo virou um pesadelo que obrigou o deslocamento das famílias e a migração forçada para outras localidades. Foi assim que minha experiência de convivência diária com o rio e com a floresta foi adquirindo um gosto amargo, mesmo que naquela época fosse impossível perceber as intrincadas engrenagens que sustentam o modelo econômico que faz da Amazônia uma espécie de almoxarifado geral do país, de onde tudo se tira e, em troca, fica o rastro de destruição, desmatamento, poluição dos rios e miséria social.
O GRITO QUE VEM DAS ÁGUAS
2022. Centenas de famílias das margens do Tocantins e do Araguaia protestam em frente à Assembleia Legislativa do Pará. Tremulam bandeiras do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Faixas e cartazes protestam contra mais um projeto que o Estado brasileiro pretende construir sem consultar os povos tradicionais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos. “Não à hidrovia Araguaia-Tocantins”, “Não ao projeto de morte do nosso rio”, “Nosso rio emprega mais gente que a prefeitura”, “queremos ser consultados”, frases que ecoaram no dia 15 deste mês, para deputados, Ministério Público e sociedade civil ouvir. São gritos de dor, um grito cansado e desesperado de tanto lutar para sobreviver.
Este projeto é mais uma tragédia anunciada. “A construção da hidrovia irá desencadear uma série de impactos ambientais, sociais, econômicos e culturais irreversíveis. No centro disso tudo, as comunidades que habitam na região são as mais afetadas. Povos ribeirinhos. Indígenas e comunidades quilombolas que dependem do rio para sua subsistência. Se, para as grandes empresas, o projeto é favorável, para a população local, é desastroso”, afirma Iury Paulino, membro da coordenação nacional do MAB.
Na pauta apresentada à Alepa e ao MPPA estão alguns dos principais impactos causados pela hidrovia: 1. Aumento do risco de erosão e de assoreamento dos rios e canais, causando perda de qualidade da água e da biodiversidade, principalmente de espécies de peixes; 2. Sobreposição de áreas de pesca com o canal da Hidrovia, o que irá gerar perdas de ambientes de pesca, insegurança alimentar e, consequentemente, perdas de receitas para os moradores e municípios; 3. Poluição por defensivos, resíduos urbanos, industriais ou de extração mineral, e óleo combustível das próprias embarcações; 4. A circulação pelo rio sendo determinada pelo fluxo das barcaças, ou seja, a prioridade não vai ser o ribeirinho transportando sua produção, mas sim, as barcaças com o minério; 5. Mudança no modo de vida e perda de bem-estar das populações locais, entre outros impactos.
Conversei com o mestre e doutor em ciências biológicas e pesquisador do Museu Emilio Goeldi, Alberto Akama, que estuda a fauna de diversos peixes amazônicos. Na entrevista com Akama, manifestei a preocupação dos pescadores de Cametá com a pesca do mapará. Eles temem o desaparecimento do mapará e outros peixes que se alimentam do mapará. Akamo respondeu que a “região tem um histórico péssimo, a barragem de Tucuruí impactou a pesca nessa região e eles nunca sofreram reparação”. Mas a pesca do mapará e do camarão sobreviveu e é uma tradição em Cametá, a base alimentar do povo cametaense é o mapará e o camarão com açaí.
Perguntei ao professor Akama se a Hidrovia pode afetar a pesca dos dois: “Sim, ela pode. Mas de que maneira não sabemos. O que se sabe é que as dragagens para permitir a navegabilidade podem criar impactos para a pesca dos dois”, se referindo ao mapará e ao camarão.
Como?: “Ao aprofundar o leito, a água tende a fluir mais pelo canal (artificialmente criado), o que modifica a dinâmica de toda a região, e isso pode diminuir afetar toda a biota” Akama ressalta também que as dragagens terão que ser frequentes e que o fluxo de balsas e barcaças podem afugentar os peixes e dificultar a pesca.
A derrocagem (destruição) do Pedral do Lourenço eliminaria uma série de espécie de peixes que são ameaçados de extinção. “Essa derrocagem vai destruir o habitat dessas espécies e conseqüentemente vai acabar com elas. Então, no Pedral e demais corredeiras, todo o cuidado é pouco, o que não foi demonstrado no EIA Rima inicial cheio de falhas”. (EIA/Rima, Estudos de Impactos Ambientais).
Na minha pesquisa e apuração não consegui esse estudo, nenhum dos entrevistados teve acesso. Akama afirma não ter achado o estudo de impactos: “Não existe RIMA, eu procurei e não encontrei”. Pela legislação, o EIA-Rima é composto de dois documentos: o EIA, que é um estudo complexo, técnico e que é para os especialistas, e o Rima, que é um documento para embasar a discussão. “Não existe Rima nesse empreendimento” completou Alberto Akama.
COMO A HIDROVIA ARAGUAIA-TOCANTINS PODE IMPACTAR NA ATIVIDADE DE PESCA E PRODUÇÃO DOS PEIXES?
Para responder essa questão básica, entrevistei a professora Cristiane Vieira da Cunha, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), que coordena no Pará o programa de Monitoramento e Gestão Participativa da Pesca Artesanal como instrumento de Desenvolvimento Sustentável em Comunidades da Região Amazônica (Propesca).
A atuação do Propesca no Pará monitora a produção pesqueira com pescadores voluntários nos Municípios de Marabá, São Geraldo do Araguaia, São João do Araguaia e no entorno do Pedral do Lourenço, que abrange os munícipios de Itupiranga, Nova Ipixuna, Jacundá e Novo Repartimento.
Os dados do Propesca, no Pará, são armazenados no Sistema Integrado de Estatística Pesqueira, programa que foi desenvolvido pelo Laboratório de Computação Científica da Unifesspa. Até a presente data, participaram aproximadamente 350 pescadores e pescadoras, que registraram 13886 pescarias. Foram capturados por este coletivo mais de 39 toneladas de pescado, o que gerou renda bruta de quase R$ 2 milhões, como mostra a tabela abaixo.
Território | nome/Cidade | Quantidade de pescarias | Peso total | Rendimento Total |
Apinagés | SÃO JOÃO DO ARAGUAIA | 2019 | 45847,1 | R$ 189.762,00 |
Entorno do pedral do Lourenção | ITUPIRANGA | 1985 | 110016,8 | R$ 321.166,26 |
JACUNDÁ | 2798 | 95267 | R$ 351.446,60 | |
NOVA IPIXUNA | 74 | 820,5 | R$ 2.934,50 | |
NOVO REPARTIMENTO | 243 | 8948 | R$ 26.510,20 | |
Marabá | MARABA | 511 | 10310 | R$ 101.202,00 |
MARABÁ | 3219 | 93308,084 | R$ 535.948,62 | |
São Geraldo do Araguaia | SAO GERALDO DO ARAGUAIA | 603 | 5739,43 | R$ 70.710,64 |
SÃO GERALDO DO ARAGUAIA | 2434 | 23215,39 | R$ 223.903,79 | |
Total Geral | 13886 | 393472,304 | R$ 1.823.584,61 |
Estes dados são subestimados, pois há uma quantidade muito maior de pescadores que usam a bacia hidrográfica e que estão na rota da hidrovia Araguaia-Tocantins, que irá realizar obras de derrocagem nos pedrais e dragagem no canal do rio. De acordo com os dados do monitoramento, estes ambientes representam juntos 40% da produção pesqueira registrada.,” quando iniciada a obra, os impactos na produção podem ser ainda maiores que 40%, pois mesmo a obra sendo realizada no canal do rio, irá impactar as margens do rio e impedirá a locomoção dos pescadores aos locais de pesca, afirmaa professora Cristiane em entrevista.
O rendimento das famílias que dependem da pesca para sobreviver, per capita/mês registrado no Propesca, representa a média um salário-mínimo ou menos. “Reduzir isso a menos 40% como é previsto caso a hidrovia aconteça, causará impactos na qualidade de vida das famílias de pescadores e em toda a cadeia produtiva da pesca na região. Isto irá refletir não apenas localmente, mas também em outras localidades, pois o pescado capturado na região é para consumo interno e para exportação, como é o caso do avoador e mapará, que abastecem mercados no Maranhão, Brasília e região metropolitana de Belém”. Conflui a professora Cristiane.
NÃO HOUVE CONSULTA PRÉVIA AO POVO
A questão chave é a falta de cumprimento do que exige a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) O. Para este braço da ONU, nenhum projeto que venha a impactar o modo de vida de populações tradicionais pode ir adiante sem que seja realizada a consulta prévia e informada. Conversei com seu Antônio Dias 54 anos, diretor da Associação dos Ribeirinhos de Cametá, comunidade Mapiraí, ele afirmou que “não está acontecendo essa questão de ouvir o povo, inclusive o povo lá está cheio de dúvidas, não conhece o projeto, que está quase se concretizando”, a preocupação do seu Antonio e de outros pescadores é justamente com a subsistência deles no rio, ”uma coisa é o mapará pra comer, outra é o mapará para vender e gerar renda”, o mapará ainda atrai outros peixes que se alimentam dele no rio, “a preocupação é muito grande que a gente está nesse momento com esses projetos que cada vez só prejudicam o meio ambiente, que a gente vive e do que a gente vai sobreviver?” conclui seu Antônio.
Os impactos de grandes projetos como esse não começam com sua construção, eles começam bem antes. A consulta aos povos nada disso vem acontecendo e o rastro de desgraças socioambientais só faz aumentar.
HÁ MUITAS PEDRAS NO CAMINHO
Para o governo federal, a Hidrovia Araguaia-Tocantins será um colosso logístico de mais de 2.500 km navegáveis, desde a nascente do Araguaia em Nova Xavantina (MT) até a foz do Tocantins, próximo à Ilha do Marajó, em território paraense. Sua justificativa econômica é servir de corredor para a exportação de grãos produzidos no Cerrado. Ou seja, é peça fundamental no tabuleiro da economia agroexportadora, regulada pelo vai-e-vem das comodities no mercado mundial, puxado pela demanda crescente da economia chinesa
Para viabilizar a navegabilidade durante o período de seca, será necessário realizar o derrocamento do Pedral do Lourenço, trecho de 43 km com grande ocorrência de rochas e que inviabiliza a navegação comercial de grande porte entre o final do reservatório de Tucuruí e Marabá. Mas a principal “pedra no caminho” do projeto é de outra natureza: são mulheres e homens que não admitem mais serem sujeitos passivos de um modelo que não entrega o progresso prometido e, ao contrário, pode ser o golpe de misericórdia ao modo de vida que por séculos teima em sobreviver na região amazônica.
Se depender da coragem dessas famílias que se colocaram em movimento exigindo consulta e transparência na condição do projeto da hidrovia, não será nada fácil impor uma mordaça a uma reivindicação carregada de pertencimento e de justeza. Não será fácil, porém, enfrentar o Estado brasileiro e os podres poderes que constroem e destroem coisas belas, como Caetano poetizava na sua célebre “Sampa”. São forças econômicas e políticas poderosas, lastreadas em negócios de bilhões de dólares. Apesar disso, as águas do Tocantins seguirão sendo tocadas para o mar, como um rio que insiste em viver e (re)existir. Deixo, aqui, como cametaense, jornalista indígena e ativista da luta ambiental, minha fala de revolta na esperança de despertar corações e braços para o bom combate, que seguirá cada vez mais firme contra mais esse projeto de morte na Amazônia.