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Ingo Müller | A invasão insensata continua

É um absurdo, caro leitor, que a gente venha falar mais uma vez sobre o desrespeito a soberania e autodeterminação de um povo. Só que, mesmo correndo o risco de me repetir aqui no BT, não posso ficar calado diante da marcha insensata de pessoas mal intencionadas, comandadas por homens que avançam sobre o território de um povo independente e autônomo para levar a morte até eles. E tudo isso enquanto usam desculpas esfarrapadas, proferidas por um presidente que apoia o genocídio para promover sua agenda política.

 Ucrânia? Não. Não estou falando da Ucrânia. Desta vez eu me refiro ao estado do Pará, onde a Terra Indígena Ucrânia? Não. Não estou falando da Ucrânia. Desta vez eu me refiro ao estado do Pará, onde a Terra Indígena Apyterewa sofre há anos um severo processo de invasão. Infelizmente para os indígenas de São Félix do Xingu, a ocupação de suas terras não está nos holofotes da imprensa internacional, e por isso não vira tema de debate na Onu ou rende condenação no tribunal de Haia, a despeito das denúncias feitas pelos próprios indígenas.

Essa indiferença com o sofrimento indígena evidencia que a morte da floresta e a destruição dos povos tradicionais são naturalizadas no Brasil há pelo menos 500 anos. Não seria agora, em 2022, que a visão tacanha sobre a ocupação da região iria mudar. A empatia serve bem para o sofrimento na Europa, mas aqui? Não, aqui os índios estão sempre no caminho do minério, da madeira e na contramão do progresso.

 Assembleia com representantes das 17 aldeias da TI com reinvindicação de demarcação de terras  Créditos: MPF

Gente de verdade

Pra entendermos o problema, vamos voltar ao passado: a TI Apyterewa fica no sudeste do Pará e é ocupada por indígenas de um ramo da etnia Parakanã que, após um conflito interno ocorrido no final do século XIX, deixaram a bacia do Tocantins e migraram em direção ao Xingu. Este grupo foi chamado de “Parakanã ocidentais”, sendo que o nome Parakanã, aliás, não é próprio da tribo: entre eles os indígenas se chamam de awaeté, que significa “gente de verdade”, enquanto os demais são akwawa – “estrangeiros”.

Durante sua marcha na virada do século os awaeté enfrentaram diversos estrangeiros diferentes: eles guerrearam com outras etnias e pilharam fazendas de colonos na região para poder sobreviver. O primeiro contato deste grupo com não indígenas teria sido em 1976, e eles resistiram por mais de uma década a tentativas de assentamento, mesmo diante das iniciativas de negociação da Funai nos anos 1970.  Foi só quando se viram sem saída, após terem seu avanço cercado pelo garimpo na década de 1980, que os Parakanã se submeteram a um processo de “pacificação” e foram assentados no que foi chamado de “Posto Indígena Apyterewa-Parakanã”.

Na época o grupo era composto de 137 pessoas. Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), a instalação do posto contou com recursos e planejamento correto, de modo que 1 ano após o contato com os akwawa brancos apenas 3 Parakanã morreram, sendo um por picada de cobra. Este declínio demográfico de apenas 1,5% foi considerado excelente e serviu de parâmetro para assentamentos futuros. Tudo indicava que aquele grupo poderia prosperar após a longa migração para o Xingu… mas não foi isso que aconteceu.

A cobiça dos estrangeiros

A TI Apyterewa, localizada no Rio Xingu. Imagem: Reprodução internet

Aquele grupo que se fixou na região de São Félix conseguiu se multiplicar: De 137 indivíduos, a comunidade passou a ter mais de 720 membros segundo um levantamento feito em 2020 pela Secretaria de Saúde Indígena. Porém, o crescimento demográfico não foi indício de tranquilidade para os Parakanã, que até hoje lutam para manter a terra em que foram assentados.

O preço do mogno no mercado internacional incentivou empresas a operarem em regiões de difícil acesso, e a invasão das terras indígenas passou a compensar o trabalho de uma operação em larga escala para extração de matéria-prima em áreas isoladas. Uma grande estrada, hoje conhecida como “Morada do Sol”, foi construída por exportadores de madeira, cortando cem km de mata através da terra indígena.

Apesar de viverem na região desde a década de 1980, os Parakanã só tiveram a posse permanente da área declarada em 1992, e nesta época posseiros já se aproveitavam da estrada principal para invadir o território que deveria ser preservado, abrindo mais de mil quilômetros de vicinais que serviram para a colonização da região: os posseiros tomaram a região perto do Igarapé Cedro, onde construíram fazendas e criaram gado.

Em 1996 o governo federal permitiu a contestação de terras indígenas não registradas em cartório, e os interessados na área (exportadores, associações de agricultores e também o governo do PA e prefeitura de Tucumã) pleitearam a revisão dos limites do território ocupado pelos Parakanã. Segundo o antropólogo Carlos Fausto, da UFRJ, a justiça afirmou em despacho que as contestações não procediam mas, apesar disso, bizarramente o pedido de revisão foi atendido e a TI encolheu.

Em 2007, a TI Apyterewa foi oficialmente homologada e demarcada por um decreto do então presidente Lula,  mas nem isso possibilitou que os limites do território fossem respeitados: o município de São Félix do Xingu moveu na justiça um pedido de anulação do decreto de homologação de terras para que a área pudesse ser explorada, e os indígenas conviveram com a insegurança jurídica porque, embora o ministro Gilmar Mendes tenha proferido uma decisão monocrática assegurando a posse da terra ainda 2019,  só no mês de março de 2022 a segunda turma do STF ratificou a legalidade do decreto de 2007.

Recorde de desmatamento

mapa das invasões mostra grande presença de não-indígenas na TI Apyterewa: Imagem: reprodução internet

A cobiça em relação ao território indígena e a pressão do desmatamento demonstram que nesses 15 anos desde que a TI foi demarcada o poder público não conseguiu assegurar que o direito à terra reconhecida para os Parakanã fosse respeitado. As invasões aumentaram, e o resultado disso é que, conforme os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) a TI Apyterewa foi a terra indígena mais desmatada do Brasil.

De acordo com o Projeto Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite, o PRODES, entre 2019 e 2020 foram desmatados 63,3 quilômetros quadrados de floresta na terra indígena. Entre 2020 e 2021, o desmatamento foi ainda maior: 68,5km quadrados – um aumento de 8,21%.

Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento na terra Apyterewa teve seu auge em 2004, e desde 2006 caiu vertiginosamente até ficar em relativa estabilidade entre os anos de 2011 e 2018 – coincidência ou não, foi nesta época que a boiada começou a passar.

Para os residentes desta área, a única forma de garantir o direito dos indígenas ao seu território legalmente reconhecido é fazer um processo de desintrusão, ou seja, expulsar os posseiros da área que pertence aos Parakanã. Existe uma decisão do TRF-1 que reconhece a ilegitimidade da ocupação dos posseiros na TI só que, apesar desta decisão ser de 2005, pouco foi feito para que essas pessoas saíssem de lá.

Para que a desintrusão ocorra, os indígenas da TI Ayterewa realizaram neste mês de março uma assembleia com representantes de 17 aldeias e do Ministério Público Federal do Pará com o objetivo de discutir soluções para o problema – infelizmente todas as medidas cabíveis esbarram na falta de cooperação e interesse do governo federal em impedir que garimpeiros e madeireiros continuem a explorar ilegalmente a região. De acordo com o antropólogo Paulo Büll, hoje mais da metade da área da TI Apyterewa se encontra invadida por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e grileiros.

“A nossa luta é ‘desintrusão já’. Tirar todos os invasores, madeireiros, garimpeiros, que acabam com  a mata para que tenhamos nossos castanhais, de onde tiramos a renda da nossa família”, disse Kaworé Parakanã, presidente da associação Tato’a, que representa os indígenas. “Só falta a parte do governo. Só falta o governo cumprir aquilo que está na lei. Mas o governo está trabalhando 24 horas contra os direitos dos povos indígenas”, poderá Kaworé, lembrando que uma das pautas do governo federal é, através da PL 191, liberar a mineração em terras indígenas.

 Apesar da inação, o governo federal segue rápido em se auto-elogiar: dando um tapinha nas costas do presidente, o Ministro da Justiça Anderson Torres agraciou o chefe do executivo com a medalha de mérito indigenista – uma honraria que deveria ser outorgada para homenagear pessoas comprometidas com a proteção das comunidades tradicionais mas que, no Brasil de 2022, serve como unguento para o ego de chefe de estado que articula pela destruição das nações que deveria proteger.

 Com informações do MPF, ISA, FUNAI, SESAI e INPE.