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Ingo Müller | A primeira vítima da guerra

Há um velho ditado, atribuído a muita gente, mas cujo autor real é desconhecido, que diz que “a primeira vítima da guerra é a verdade”. É bom manter isso em mente enquanto a gente acompanha pela TV o conflito entre Rússia e Ucrânia que acontece a quase 10 mil km da nossa casa – porque antes do primeiro míssil voar, da primeira bala ser disparada e do primeiro soldado dar seu último suspiro a verdade já morreu faz tempo.

Ontem, por exemplo, fui assistir um mini doc da BBC que se propunha a contar a origem do presidente Vladimir Putin. Só que o material exibido no Brasil tinha aquele tom carregado, típico das narrativas de guerra fria, falando da infância pobre na URSS que o obrigou a viver em uma casa comunal (coisa que nunquinha aconteceu no Brasil, né?), até ele fazer carreira e ascender no ranking da “misteriosa e sinistra KGB” – tudo isso para traçar o passado de Putin como um “espião que virou político”.

Não estivéssemos em 2022, eu poderia jurar que era aquelas propagandas sobre o “perigo vermelho” veiculadas no ocidente durante a guerra fria. Pra ser um filme do James Bond, só faltava eles terem mostrado o Putin sentado em uma cadeira enquanto acariciava um gato branco.

Não me levem a mal, como jornalista eu já passei muito tempo refletindo sobre objetividade e inexistência de imparcialidade, e na função de colunista eu entendo a presença de opinião em artigos assinados – ainda assim, acho extremamente complicado vender como documental algo que usa adjetivos para apelar para medos íntimos e inimigos antigos enquanto se conta uma história. Essa dramatização da verdade não me convenceu no documentário da Petra Costa, e certamente não me agradou na adaptação da obra da BBC.

Não estou falando que Putin é santo, pelo contrário: o que quero dizer é que não é preciso nada além dos fatos para condenar as atitudes dele. Não é preciso acomodar a verdade num roteiro de thriller de espionagem para que a gente critique a postura beligerante de um presidente que manda tropas avançarem sobre um país vizinho.

Aliás, do lado Russo também se atenta contra a verdade com a mesma frequência com que se atacam pessoas. Putin evita usar a palavra “guerra”: ele se refere a presença de soldados, blindados e aos bombardeios do outro lado da fronteira como sendo parte de uma “operação especial” para liberar minorias de duas regiões oprimidas pelo governo “Ucraniano Nazista” – algo que não parece ter muito respaldo na realidade, e me fez lembrar do governo Bush jurando de pés juntos que a invasão do Iraque era por conta de armas químicas de destruição em massa que jamais foram encontradas.

Guerras começam de várias formas, mas o desfecho costuma ser um só. E pra que a nossa opinião não se transforme em mais uma arma capaz de ferir inocentes durante o conflito, é importante nos blindarmos com a verdade para ficarmos protegidos desse fogo cruzado de lorotas.