Mais de 250 anos antes de Cristo revolucionar o mundo pregando o amor, no extremo oriente já se alertava sobre o perigo que as armas exercem sobre o indivíduo: no Tao te Ching é dito que “armas não são instrumentos de boa sorte”- para a verdade universal do Tao, todos deveriam abominar armas, já que elas são criadas com a única e específica função de matar pessoas.
Dois mil anos depois, as pesquisas parecem comprovar os ensinamentos de Lao Tzu, já que ter arma em casa aumenta significativamente o risco de morte violenta relacionada a armas de fogo – e não sou eu quem afirma isso: o professor David Hemenway, da universidade de Harvard, nos EUA, compilou 150 estudos sobre o impacto das armas de fogo na sociedade para concluir que ter uma arma para autodefesa não reduz suas chances de ser ferido.
Os estudos conduzidos em Harvard também apontam que a dispersão de armas na comunidade não parece ter efeito benéfico na redução de crimes, e que a cultura armamentista pode em longo prazo contribuir para que caras maus tenham acesso a instrumentos letais – afinal, armas não brotam assim, do nada, nas mãos de bandidos.
Tiro que sai pela culatra
Segundo Hemenway, é estatisticamente mais provável que a arma seja usada contra a família do dono da arma do que por ele para se defender de um hipotético invasor. Entre os riscos associados à posse de arma estão acidentes fatais, suicídios e violência doméstica em uma proporção que, de acordo com o especialista, faz com que os riscos de se ter uma arma superem os supostos benefícios.
Dito isto, percebemos que é irracional querer ter uma arma de fogo. Só que, conforme explica a psicologia, a decisão de ser um cidadão armado não segue a lógica da razão: ela é alimentada por vários vieses ideológicos que fazem com que seu comprador ignore seletivamente dados e fatos relacionados ao malefício do armamento.
Fica claro que, embora seus proprietários aleguem o contrário, ter uma arma em casa não é fruto de uma avaliação de risco – racionalmente não haveria razão para tê-las, como mostram a pesquisa de Hemenway. Possuir armas de fogo tem mais a ver com a sensação de poder do que a necessidade de ter: é um estilo de vida, uma mensagem para a sociedade e uma parte da identidade do dono. O valor simbólico da arma é maior que a sua utilidade.
Armados e perigosos (para a sociedade)
Durante a última campanha eleitoral, Bolsonaro soube explorar o apelo desse valor simbólico para criar uma plataforma favorável ao armamento civil, conquistando o apoio até mesmo de pessoas que, considerando sua situação econômica, jamais teriam condições financeiras de ter uma arma em casa.
O truque, aqui, foi apelar novamente para o que a arma representa na cabeça do eleitor, dialogando com aquele pedaço primitivo e intolerante do cérebro que deveria funcionar apenas nas situações em que é imperativo lutar ou fugir – mas que em outubro de 2018 foi acionado por muita gente no momento em que eles estavam diante da urna eletrônica.
Desde então, o armamento civil foi continuamente incentivado pelo chefe do executivo nacional e seu séquito de lobistas. Como resultado, a quantidade de novos registros para Caçadores, Atiradores e Colecionadores concedidos pelo Exército disparou: foram mais de 1.150 por dia até novembro do ano passado, contra 567 no ano anterior.
Atualmente o Brasil tem mais de 2 milhões de armas de fogo nas mãos de civis, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado em 2021 – É um número quase cinco vezes maior do que a soma de todos os policiais militares na ativa em todos os estados do país.
Essa discrepância pode ficar ainda maior já que, em vez de pensar em medidas de controle, Bolsonaro é mais inclinado em afrouxar qualquer regulamentação referente a armas de fogo.
Desde antes de ser eleito Bolsonaro ataca o estatuto do desarmamento e, após a posse, tenta – com o peso da caneta – revogar suas medidas: embora o estatuto tenha sido responsável pela preservação de quase 200 mil vidas desde 2004, o chefe do executivo já assinou 14 decretos presidenciais, 14 portarias de órgãos de governo, dois projetos de leis e duas resoluções para contestar as medidas do estatuto, conforme levantamento do jornal O Globo. A maioria delas foi contestada no STF, que se colocou no caminho do objetivo traçado pelo presidente para liberar não só a posse, mas o porte de arma, para a população.
A cabeça do cidadão armado
Para enxergar como pensam os defensores do armamento civil a gente precisa compreender que o medo é combustível para tomadas de decisão precipitadas, e que ele abunda numa sociedade em que a população é instigada a crer que sua vida e seus valores estão sob constante ameaça. A natureza da ameaça pouco importa, desde que a pessoa seja levada a crer que ela é grave o suficiente para justificar que o indivíduo se comporte como o John Wick quando a oportunidade surgir.
Essa, aliás, é outra característica em comum entre os proprietários de armas: eles romantizam as próprias capacidades. O cidadão médio que porta um instrumento letal julga que tem o treinamento e o temperamento adequado para lidar com ele em todas as situações, muito embora até profissionais treinados rotineiramente cometam equívocos – erros que, não raro, custam vidas como a do estoquista Durval Filho, morto pelo sargento da Marinha Antônio Alves Bezerra, seu vizinho, que não titubeou em disparar contra o inocente por julgar (sabe-se lá por qual motivo – mentira, a gente sabe sim) que Durval iria lhe assaltar.
Infelizmente tragédias como a de Durval são mais comuns que a gente gostaria de noticiar – na verdade uso das armas de fogo conforme o propósito alegado pelos seus donos é que é infrequente: os estudos conduzidos nos EUA apontam que donos de armas só as empunharam em autodefesa 0,9% das vezes. Por outro lado, qualquer situação corriqueira, como uma discussão de trânsito, pode facilmente escalar para a tragédia caso um dos envolvidos esteja armado.
Além de relevar a possibilidade de infligir danos a terceiros, o “cidadão de bem” que quer ter um trezoitão na cintura para “se proteger” ignora que a chance de uma pessoa que tem arma em casa se suicidar é três vezes maior porque, na cabeça dele, “isso nunca aconteceria com a sua família”. Assim como este, cada exemplo citado não se aplicaria à sua realidade porque com ele “é diferente”.
Certa vez tive a oportunidade de conversar com um policial que, após ser transferido de São Paulo para Belém, apresentou o brilhante raciocínio de que “armas não matam pessoas – pessoas matam pessoas”. É um chavão dentre os defensores do armamento civil, que sugere uma dicotomia inexistente ao ignorar que pessoas matam pessoas… com armas.
Por viver na ilusão e se considerar imune aos riscos de ser vítima ou perpetrador de incidentes relacionados ao mau uso das armas, toda tentativa de “tirá-las” das mãos dessas pessoas é vista como ataques à sua liberdade e ao seu direito de se defender. Isso esvazia o debate sobre o tema, porque o nosso intuito ao abordar o assunto é falar de políticas de segurança e saúde públicas, e desta forma ponderar o que é melhor para a sociedade. Não é um indivíduo armado que vai, sozinho, resolver o crime – da mesma forma uma multidão armada é chamada de “milícia” e não de “justiça”.
***Agradecimentos aos amigos Caio Nascimento, pela indicação bibliográfica, e André França, pela revisão matemática do artigo.