Via Agência Pública, por Karina Tarasiuk.
No final de maio, 128 pessoas morreram e ao menos 6 mil ficaram desabrigadas devido às fortes chuvas que atingiram Recife e a região metropolitana da capital pernambucana. Já a cidade de São Paulo teve o mês de julho mais seco de sua história, após passar 47 dias sem qualquer sinal de chuva.
Com o aumento da temperatura, a tendência é que extremos como esses se tornem cada vez mais comuns. E com eles o número de pessoas atingidas. A medida como esses desastres afetam as cidades, porém, segue uma lógica conhecida: os que mais sofrem com isso são pessoas negras, de baixa renda e que habitam regiões periféricas, em especial mães chefes de família, como mostra relatório do Instituto Pólis ao qual a Agência Pública teve acesso.
O estudo “Injustiça socioambiental e racismo ambiental” observou três capitais brasileiras — Belém, Recife e São Paulo — e encontrou padrões que se repetem no resto do país. A partir dos dados, é possível enxergar como o racismo ambiental, que entende que as consequências das degradações ambientais se concentram em territórios periféricos, regiões com maior presença de pessoas negras, indígenas e quilombolas e menos acesso a recursos e serviços ambientais básicos como água limpa, saneamento e tratamento de lixo, acontece na prática.
Em Belém, que tem 64% da população negra, 75% das pessoas que moram em áreas de risco são negras, mostra o estudo. Em Recife, 55% da população é negra, mas nas regiões com risco de inundação o valor sobe para 59%, e atinge 68% onde há risco de deslizamento. Em São Paulo, apenas 37% da população é negra — em comparação com a média brasileira de 54%. Mas 55% das pessoas que vivem em regiões de risco são negras.
“Os impactos ambientais nas cidades são socialmente produzidos: não são apenas fruto de eventualidades climáticas. No entanto, a distribuição de suas consequências se dá de forma desigual no território urbano. Esse desequilíbrio é, em parte, a expressão da injustiça socioambiental e do racismo ambiental nas cidades”, afirma o relatório.
De acordo com o estudo, as áreas de risco não têm valor para o mercado formal e estão fora das frentes de interesse do setor imobiliário. “Sua ocupação por famílias de baixa renda ocorre pela total falta de alternativas habitacionais. As condições financeiras das famílias de baixa renda são insuficientes para arcar com os custos da moradia no mercado formal – seja para aquisição ou para locação”.
BELÉM
Dividida entre o continente e 42 ilhas que ocupam cerca de dois terços do seu território, Belém está às margens da Baía do Guajará e do Rio Guamá e tem o justificado título de capital mais chuvosa do Brasil, com média pluviométrica anual de 2085 mm – enquanto a média do país varia entre 1250 e 2000 mm. A cidade possui 125 áreas de risco, que, apesar de ocuparem 5% de seu território, abrigam 11,5% da população – 173 mil pessoas, segundo dados da pesquisa.
Cerca de 99% dos 193.557 domicílios em favelas estão localizados em encostas e 1% em margens de rios, lagos ou córregos. Mulheres de baixa renda, com até um salário mínimo, e chefes de família são mais afetadas: representam 21% das moradias em áreas de risco — taxa que desce para 16% na média da cidade.
Os dados também mostram que a porcentagem de pessoas negras é inversamente proporcional à renda média: nos domicílios que se encontram em área de risco, a renda familiar tem a média de R$1,7 mil, valor 32% menor que a média geral da cidade, de R$2,5 mil.
A engenheira sanitarista e ambiental Waleska Queiroz, de 28 anos, trabalha há mais de 10 anos em projetos socioambientais. Assim como muitos de seus vizinhos, ela foi remanejada de sua casa na Avenida Perimetral, próxima à Universidade Federal do Pará, para que a via fosse duplicada. Sua família e muitas outras foram realocadas em um conjunto de prédios de habitação social próximo à margem do rio Tucunduba.
Lá ela se sente frequentemente ameaçada: “A minha grande preocupação morando próximo ao [rio] Tucunduba é que vai haver um momento com toda essa questão de mudança do clima, mudança no índice pluviométrico, com chuvas mais fortes, mais intensas, que vai chegar um momento em que esse rio não vai suportar essa carga. Até porque a drenagem do local já está toda impermeabilizada, então não tem por onde a água escoar. E aí conciliado à questão dos resíduos, que estão ali entupindo vias e tudo mais, esse processo fica ainda mais significativo.”
Parte da Rede Jandyras, grupo de mulheres que pautam a questão climática em busca da construção de políticas públicas mais efetivas na capital, ela ressalta o papel do racismo ambiental na sua realidade. “Quando eu falo disso, quando eu falo desse ambiente não saudável e concilio com a pauta climática, eu entendo que eu estou sofrendo um processo de racismo ambiental. Eu sofri desde o momento em que eu saí do meu território, [em] que eu construí a minha história, a minha identidade. Me tiraram dali à força, sem entender a minha história, e me colocaram em um ambiente que está totalmente degradado”, conta Waleska.
RECIFE
Já em Recife o estudo mapeia 677 áreas de risco, que ocupam 8% do território da cidade e, assim como em Belém, abrigam uma quantidade bem maior de pessoas – 16,3% da população da capital (251 mil pessoas).
Das 102.392 moradias localizadas em favelas mapeadas pela pesquisa, 65% estão em encostas e 12% em margens de rios, lagos ou córregos.
Cerca de 55% da população da cidade é negra. Nas áreas com risco de inundação a taxa sobe para 59%, e onde há risco de deslizamento o valor sobe para 68% de pessoas negras.
Enquanto na cidade 19,7% das moradias são chefiadas por mulheres que ganham até um salário mínimo, o valor aumenta para 22,1% nas áreas com risco de inundação e para 26,8% nas áreas com risco de deslizamento.
A renda média familiar nas regiões com risco de inundação é de R$2,1 mil — valor que desce para R$1,1 mil nas regiões com risco de deslizamento. A média da cidade é de R$2,7 mil.
Segundo o relatório, os riscos ambientais de Recife “estão vinculados tanto a perigos hidrológicos, de inundação dos rios, quanto a perigos geológicos, de deslizamentos de terra em áreas de maior declividade”.
No atual cenário de emergência climática, o aumento do nível dos mares é um processo que afeta principalmente cidades costeiras — é o caso da capital pernambucana. “Seus impactos podem ter proporções ainda inestimáveis, mas certamente ameaçam ainda mais as populações atualmente expostas a riscos hidrológicos e cujo grau de resiliência é muito limitado”, informa o relatório.
Edicleia Santos mora há 24 anos na comunidade de Passarinho, que fica na periferia de Recife. Ativista, participa da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, onde denuncia a falta de políticas públicas na sua comunidade.
Viu as transformações da natureza que o bairro sofreu: o verde foi se extinguindo e o rio também. “A gente tinha um rio maravilhoso, no final de semana o pessoal ia pra beira do rio, tomava banho, a água [era] limpíssima. A mata era linda e maravilhosa, e hoje a gente não tem mais. O rio foi-se embora”, relata. Sem a mata nativa, o solo fica mais frágil e mais propenso a sofrer desastres como enchentes e deslizamentos.
Ela conhece famílias que tiveram perdas com as chuvas de maio: “[Com] a chuva de maio quase que Passarinho foi parar embaixo d’água”, diz. O rio que existia na região foi transformado em uma vala quando a prefeitura implementou o saneamento básico, e hoje se tornou praticamente uma fossa.
“Quando a chuva vem, vem e inunda a maioria das casas que estão na beira do rio. E esse ano foi a pior chuva que teve, porque inundou uma grande parte da comunidade e muita gente perdeu tudo. Foi um caos, a água chegou no teto das casas”, relata a moradora.
SÃO PAULO
São Paulo, por sua vez, possui 1314 áreas com risco de desastres ambientais. São áreas que ocupam 17,3 milhões de m², o equivalente a 1,2% do território da cidade, e envolvem 370 mil pessoas, 3,3% da população.
Dos 355.756 domicílios localizados em favelas, 38% se encontram em encostas e 25% em margens de rios, lagos ou córregos. Na cidade, 8,4% das famílias são chefiadas por mulheres com renda de até um salário mínimo — valor que sobe para 12,6% nas áreas de risco.
A média do rendimento das famílias que vivem em áreas de riscos ambientais é de R$1,6 mil, enquanto a média da cidade é consideravelmente maior: R$3,5 mil.
Amanda Costa, de 25 anos, é ativista climática, formada em Relações Internacionais, e fundadora do Instituto Perifa Sustentável, que luta pela justiça climática a partir de educação socioambiental.
Moradora da Brasilândia, bairro periférico da capital, explica que a população passa por situações de desastres climáticos com frequência: “Sempre que chove. Já aconteceu de eu ficar presa no ônibus, esperando a água baixar. Já aconteceu de, quando chove muito, cair a energia e só voltar depois de um dia.”
Ela lembra que, quando era criança, havia infiltração na sua antiga casa, e toda a cozinha ficava alagada. “Eu lembro de uma visão, minha mãe tirando todas as comidas do armário, chorando porque perdeu muita coisa. Estar na periferia é conviver diariamente com esses desafios.”
Segundo Amanda, a origem do racismo ambiental está na política. “Passa por todo esse contexto histórico, social, ambiental e econômico, que vai afetando principalmente os grupos mais vulnerabilizados”. A vulnerabilidade social, segundo ela, não é ocasião do destino. “Foi feito um projeto político para que uma galera ocupasse o poder, um grupo que tem os recursos que detém as tomadas de decisão, que decide esses ambientes políticos, que não representa a massa populacional”.
“Não restam dúvidas de que a injustiça socioambiental e o racismo ambiental também se manifestam através do próprio planejamento urbano, cuja má distribuição de infraestruturas de serviços básicos é definidora das desigualdades estruturantes e vulnerabilidades aos eventos climáticos”, afirma o estudo. “A privação do acesso à água potável, a ausência de esgotamento sanitário, assim como as ocorrências de inundações, alagamentos e deslizamentos, também colaboraram com a reprodução das desigualdades urbanas, sociais e raciais nas cidades”.
Para Amanda, as dificuldades da luta popular em relação ao próprio território ocorrem em razão da falta de representatividade, “esse contexto social, histórico, que nos afastou de lugares de protagonismo, de liderança, de visibilidade, de comunicação”.
Ela destaca: “A transformação é coletiva”, e conta que somente com um grupo de pessoas mobilizadas e engajadas atuando no coletivo é que haverá mudança e justiça social.
*Esta entrevista faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.
Texto: apublica.org.