O dia em que a raça humana for erradicada, historiadores alienígenas vão ter muita dificuldade em entender porque os hominídeos se mataram tanto por petróleo. A quantidade de golpes e conflitos motivados por este óleo e seus derivados não tá no gibi… e no caso da invasão da Ucrânia, além de ter sido estopim, os hidrocarbonetos também servem de arma no teatro de operações do capitalismo, onde a capacidade de ferir a economia do inimigo pode ser mais determinante do que a dispersão de balas e bombas.
Mas estou me adiantando. Antes de me aprofundar nos impactos do conflito, queria expor o que eu acredito que seja a real origem do embate que, além da superfície, não é entre Rússia e Ucrânia – mas entre Rússia e ocidente, sendo a Ucrânia uma vítima infeliz da disputa de poder entre potências estrangeiras.
Oooolha o gás!
Desde 2011, o gasoduto Nord Stream liga Alemanha e Rússia para fornecer gás natural para a Europa. Um segundo ramal, o Nord Stream 2, estava previsto para ser construído logo em seguida, mas atrasou mais que o BRT porque foi fonte de muito atrito entre Washington e Berlim pois, na doutrina de poder dos EUA, quem controla o fornecimento de energia controla o mundo – e o fluxo irrestrito de gás natural entre Rússia e Alemanha fortaleceria os dois países na mesma medida em que afrouxaria a influência dos EUA na região.
Aos trancos e barrancos o Nord Stream 2 ficou pronto, ainda que com dez anos de atraso, para ser inaugurado em 2022, deixando os estrategistas do Tio Sam de cabelo em pé: nas palavras do analista político Mike Whitney, os gestores da política externa dos EUA não estavam felizes com a aproximação entre Alemanha e Rússia porque “comércio fortalece a confiança”, e “num mundo onde Alemanha e Rússia são amigas e parceiras comerciais, não há necessidade para bases militares dos EUA, para onerosas armas feitas pelos Estados Unidos e sistemas de mísseis, e não há necessidade de OTAN”.
Essa mudança na arquitetura da segurança mundial chacoalharia os alicerces dos EUA e, para preservar a si mesmo, os EUA usaram a Otan para azedar as relações entre Rússia e o resto da Europa. Apesar de ter sede em Bruxelas, a Otan dança conforme o tambor norte-americano e, em 2018, como quem não quer nada, adicionou a Ucrânia na lista de países aspirantes a membro.
Esse aceno ocorreu dois anos depois do presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker afirmar que levaria “uns 25 anos para” a Ucrânia poder se juntar a este acordo militar. Ou Juncker, um político cascudo, errou muito na sua previsão… ou uma movimentação pesada de bastidores abriu as portas para essa possibilidade de adesão – eu acredito na segunda hipótese.
Presidente russo fica Putin
Em 2019 o parlamento Ucraniano aprovou, por esmagadora maioria de votos (334 de 385 possíveis), mudanças na constituição que permitiriam a adesão do país à OTAN e também à União Europeia. O presidente russo Vladimir ficou Putin da vida, porque a aproximação da Ucrânia com a Otan significaria a implantação de bases americanas no quintal da sua casa.
A eleição de Volodymyr Zelensky ampliou ainda mais a tensão, já que ele assinalou uma aproximação com o ocidente, fazendo com que a Rússia tomasse uma atitude contra o assanhamento da Ucrânia em relação à possibilidade de participar da Otan.
Isto ocorreu porque desde 1997 nada menos que 14 países que pertenciam à esfera de influência soviética passaram a fazer parte da Otan, mas a Ucrânia foi vista como gota d’água pela proximidade geográfica e histórica com Moscou.
Mas para tomar uma atitude e invadir o país vizinho, a Rússia precisava arrumar uma desculpa – que veio na forma das alegações de defesa de minorias oprimidas e “desnazificação” do país. Entendo que tanto a ascensão de movimentos fascistas de extrema direita na Ucrânia quanto o desejo separatista de Donetsk e Luhansk são uma realidade, mas são argumentos fracos para uma invasão em larga escala.
(Vale lembrar que em 2014, quando anexou a Criméia, a Rússia também se valeu de uma narrativa de instabilidade e golpe para não tomar na cara dura uma região de importância geoestratégica).
Aliás, a despeito de toda narrativa sobre heroísmo e resistência, creio – pela disparidade entre os países – que, se a Rússia quisesse arrasar a Ucrânia, Kiev já seria uma pilha de escombros. Isso evidencia que o objetivo da ofensiva Russa é passar um recado, e não derrotar um país: apesar de toda tragédia humanitária e do deslocamento de refugiados, testemunhamos uma guerra menos letal que qualquer conflito que envolva a Rússia poderia ser.
As armas (e as vítimas) do capitalismo
Isso acontece por conta dos desafios impostos pelo front paralelo – o do mercado. Enquanto enfrenta a resistência Ucraniana, a Rússia também tem embates financeiros com o resto do mundo na forma de embargos e boicotes (os quais as potências latino-americanas se abstiveram, e isso vai nos custar).
O boicotaço doeu no bolso dos 21 maiores bilionários Russos, que com a exclusão do país de sistemas bancários internacionais e demais sanções perderam, juntos, 84 bilhões de dólares. A moeda russa também sofreu um tombo considerável, perdendo 30% do valor em uma semana.
O que se esperava após tudo isso é que os ricaços que viram seu dinheiro evaporar pressionassem as lideranças do país a um cessar fogo. Só que a estiagem financeira não vai afetar apenas os super ricos: o dano colateral dessas medidas é que trabalhadores assalariados da Rússia vão sofrer com um empobrecimento terrível, maior que a perda de poder de compra que tivemos no Brasil desde que nossa economia passou a ser tenebrosamente gerida pelo Paulo Guedes.
Como apesar dos embargos as negociações de paz não avançaram, os EUA dobraram a aposta e proibiram a importação de petróleo russo. Para um país que é o segundo maior produtor de petróleo do mundo, ter o maior comprador fechando a torneira é um prejuízo e tanto… mas Europa não aderiu a esta medida, e nem pode, porque tem uma dependência energética da Rússia e Putin ameaçou cortar o fornecimento de gás natural para a União Europeia caso o bloco se juntasse aos EUA nesta medida.
E assim o petróleo e seus derivados viraram arma de guerra. Se a Europa parar de comprar da Rússia, a economia de um país que já está fazendo uma ginástica para segurar a moeda vai pra cucuia, mas se os Russos interromperem o fornecimento de gás pra Europa, o continente não vai conseguir se aquecer no inverno vindouro.
Enquanto isso, o que também se aqueceu, logicamente, foi o preço do barril de petróleo. Embora não tenha chegado a 300 dólares, como ameaçou o Kremlin, o valor do barril já subiu 30% desde a invasão da Ucrânia, fechando perto de US$ 130 esta semana. (Ainda) não é o recorde histórico, mas está quase… e, se isso acontecer de vez, vamos sentir violentamente os impactos da guerra aqui no Brasil.
Quando o petróleo teve sua máxima, 15 anos atrás, chegou a custar 147 dólares por barril – mas na época a política de preços da Petrobrás não era atrelada ao mercado internacional, e o preço cobrado pelo litro da gasolina nos nossos postos de combustível era de R$ 2,493 (ô saudade!).
Com a nova política de preços da Petrobras combinada a um ministro da economia sem tato social e um presidente do BC que não se importa com o câmbio, periga a gente ver a gasolina custando uns dez paus até junho. Salve-se quem puder.
Fumaça à vista!
Toda essa situação do petróleo poderia ser uma oportunidade para o mundo abrir os olhos para a urgência da mudança da matriz energética para fontes mais ecológicas, como a energia solar que gratuitamente banha o nosso planeta todos os dias. Só que, considerando o preço do investimento inicial, o lobby das petrolíferas e o desinteresse dos governos, acredito que é mais fácil países emergentes reverterem suas matrizes para o carvão, mais poluente, do que darem um passo adiante rumo à energia limpa. A natureza, desta forma, vai ser mais uma vítima da guerra.
E quem ganha?
Como a gente pode ver, a guerra é terrível para cidadãos da Rússia, Ucrânia, Europa e até para os Brasileiros…. mas então, quem ganha com este conflito? Simplificando, os EUA. Aliás, os EUA já venceram esta guerra – e me refiro à guerra de verdade, por mercado e influência, travada muito antes da Rússia pôr os pés no país vizinho.
A Alemanha já suspendeu, desde fevereiro, a operação do Nord Stream 2. Não há clima nem contexto favorável para o avanço do projeto. O chanceler Olaf Scholz disse em entrevistas que estão longe de colocar o gasoduto em operação, e que ninguém pode prever o seu futuro.
Lá longe, em Washington, alguém deve ter estourado um champanhe. No dia 8 de março, durante uma audiência no senado, a subsecretária de estado para assuntos políticos dos EUA, Victoria Nuland, disse que o Nord Stream está morto. “É um pedaço de metal no fundo do mar e não acredito que possa ser ressuscitado”, afirmou Nuland. Missão cumprida.