Os gritos de milhares de pessoas que protestavam no gramado em frente ao Congresso Nacional, na quarta-feira, 9, contra a aprovação do chamado Pacote da Destruição, não foram ouvidos pela bancada que dá sustentação ao governo Bolsonaro e defende com fidelidade canina os interesses do agronegócio, do armamentismo e do fundamentalismo religioso. Numa demonstração de total menosprezo diante das manifestações das entidades indígenas, sociedade civil, de artistas, ambientalistas, pesquisadores, movimentos sociais e povos indígenas, o rolo compressor do governo federal aprovou com o placar de 279 votos a favor, 180 contra e 3 abstenções, a urgência para o projeto de lei 191/2000, que libera a mineração nas terras indígenas. Agora, esta proposta terá sua tramitação acelerada, podendo ser votada entre os dias 12 e 14 de abril.
Mas, o que está por trás dessa movimentação que pretende ainda dar o golpe de misericórdia na legislação de proteção ambiental do país, aprovando também a toque de caixa outras matérias igualmente polêmicas, como o PL 2.159, que altera (para pior, claro) as regras de licenciamento ambiental; o PL 2.633 e o PL 510, sobre grilagem de terras públicas; o PL 490, sobre o Marco Temporal; e o PL 6.299, que revoga a atual Lei dos Agrotóxicos?
Desde quando Bolsonaro assumiu o governo em 2019, houve um crescimento absurdo de 91% dos pedidos de licença para exploração minerária em terras indígenas na Amazônia. Foi a primeira vez, desde 2013, que isso aconteceu, pois esses pedidos vinham caindo ao decorrer dos anos.
Bolsonaro anda de mãos dadas com pessoas e empresas mineradoras que carregam histórico de atividade ilegal no país e a grande maioria respondem processo na justiça brasileira por crime ambiental. Os dados são referentes a 2019 e possuem as seguintes figuras envolvidas: o artista plástico Sami Hassan AKL, responsável pelo maior número de pedidos para exploração mineral em Tis, com sete requerimentos; a gigante da mineração mundial Anglo American, de Londres, através de sua subsidiária, American Níquel do Brasil, fez seis pedidos de exploração. Os dois sócios, Cleidson Cavalcante Hashiguchi e Alex Renato Queiroz, respondem por processos e condenações judiciais por questões ambientais no Pará; eles são da Cooperativa de Trabalho de Mineradores e Garimpeiros do Marupá (Coopermigama) com quatro pedidos de exploração. Ex governador do Amazônas, Amazonino Nunes, e seu vice, Samuel Assayag Hanan, têm seis pedidos, com forte interesse na pesquisa de estanho nas Tis Yanomami, em Roraima, e Waimiri- Atroari, entre Roraima e Amazonas. Essas são algumas empresas e pessoas “barra pesada” interessadas na urgência da aprovação do PL 191/2021. Todo esse levantamento foi realizado pela Agência Pública, com base nos processos da Agência Nacional de Mineração (ANM) e Fundação Nacional do índio (FUNAI).
A guerra é aqui
Ailton Krenak, filósofo indígena respeitado no mundo inteiro, costuma dizer que a Guerra da Conquista iniciada há 522 anos perdura até hoje. É uma guerra sem trégua, que ao exterminar os povos originários decreta o próprio fim da civilização. Soa como uma ironia perversa que Bolsonaro utilize mais uma de suas fake news para justificar a escalada contra os direitos dos povos indígenas. Alardeando que a guerra na Ucrânia trará como consequência uma crise sem precedentes no fornecimento de fertilizantes que alimenta o agronegócio no Brasil por conta da extrema dependência do nosso país à importação, sobretudo da Rússia, o presidente passou a divulgar que a saída seria liberar a exploração de potássio em terras indígenas urgente. Mentira descarada, que é desmentida por órgãos oficiais do próprio governo como a Agência Nacional de Mineração que prova que apenas 10% desse mineral estão em terras indígenas e que mais de 80% concentram-se fora da Amazônia, especialmente em Minas Gerais. É um escândalo que um argumento falacioso possa ser utilizado para cometer mais um crime contra a sobrevivência dos nossos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Bolsonaro brinca com a vida dos povos indígenas, quer pagar para ver um banho de sangue acontecer, vai ter resistência com a própria vida de vários povos indígenas que não vão aceitar conviver com o garimpo dentro de seus territórios, estamos diante de uma guerra anunciada com custos sem precedente caso esse projeto de lei seja aprovado. “Vamos lutar com nossas vidas”, disse Tuira Kayapó no Acampamento Terra livre em 2019, uma das maiores lideranças do povo Kayapó. É no Pará, que os processos minerários avançaram drasticamente no primeiro ano do governo Bolsonaro.
Dividir para reinar
Afrontando a Constituição Federal (Art. 231, parágrafo 7º) e a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, a mineração ilegal e predatória avança em terras indígenas. No seu rastro, uma enorme onda de degradação ambiental, adoecimento e morte das populações originárias e uma profunda divisão das comunidades, com a infiltração de organizações criminosas que espalham o terror e o medo. Desde que Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, em janeiro de 2019, a invasão garimpeira explodiu, alcançando indicadores alarmantes. Afinal, mesmo antes de alterarem a legislação, o exemplo que vem de cima é bem claro: podem invadir, que o presidente vai garantir a impunidade. Somente quando a violência atinge níveis insuportáveis e há uma cobertura da mídia, ocorre alguma movimentação da enfraquecida rede de proteção ambiental. Foi o que recentemente aconteceu nos episódios de dezenas de balsas garimpando e poluindo no rio Madeira, em Rondônia, e a gigantesca maré de lama tóxica que manchou por semanas o Tapajós, alcançando Alter do Chão, território do povo Borari em Santarém. Um pouco antes, em 2019, causou menos escândalo e praticamente nenhuma ação governamental efetiva a revelação de que, segundo estudos da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Enesp/FioCruz), 56% das mulheres e crianças Yanomami, no Amazonas e em Roraima, apresentam presença de mercúrio acima do limite tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). De lá para cá, já são mais de 20 mil garimpeiros ilegais devastando a TI Yanomami. Um crime contra esse povo e contra a humanidade, tudo sob o olhar cúmplice da Polícia Federal e do governo Bolsonaro.
Há, porém, uma divisão entre os próprios indígenas. Imposto pela miséria e falta de assistência do governo, muitas lideranças indígenas encontram na mineração uma saída, mesmo que precária e extremamente arriscada, uma forma de garantir algo para as aldeias, a verdade que a luta de alguns povos indígenas contra o garimpo já vem sendo derrotada há décadas e com a entrada de Bolsonaro, o golpe fatal veio e muitas lideranças jogaram a toalha, até mesmo para não morrer, pois a luta contra o garimpo ilegal, é desproporcional, invisível e sem apoio do governo e da própria sociedade em geral, que pouco entende sobre o assunto, mas nos últimos tempos a luta contra o garimpo vem ganhando apoio e adeptos. Temo que seja tarde demais.
Como produto dessa estratégia neocolonial de dividir para reinar (e, com maior facilidade, exterminar), a fratura e a guerra aberta no seio de vários povos só fez aumentar. É com o caso dos recentes conflitos registrados entre os Munduruku, no médio Tapajós, e os Kayapó, no Sul do Pará, batalhas entre lideranças financiado por bandidos da mineração ilegal na Amazônia e apoio nada disfarçado do governo federal. Cada gota de sangue derramado e cada liderança ameaçada de morte como o caso de Leuza Munduruku que teve sua casa invadida em 2021 e Alessandra Munduruku duas lideranças indígenas mulheres ameaçadas por garimpeiros, se algo acontecer com elas sabemos que o governo Bolsonaro tem culpa nisso, o movimento indígena não aceita perder mais nenhuma guerreira ou guerreiro para essa guerra que o Estado brasileiro declarou contra a vida dos originários, contra o meio ambiente.
Caso o PL seja aprovado, os povos indígenas mais afetados por mineração na Amazônia: Yudjá, com cerca de 87% do seu território, depois os povos Kayapó, com 58%, Apalaí 52%, Wayana 52% e Katuena com 47%. Mas com maior extensão territorial os povos Kayapo com 62, mil km2 seguido dos Yanomami com 33,3 mil km2, Apalaí e Wayana com 22,3 mil km2, e Katuena com 18, 6mil km2. Sào povos e territórios de constante conflitos e mortes por conta do garimpo, quem se recorda das duas crianças Yanomami dragadas e mortas por uma draga de garimpo, em outubro de 2021, dados da Agência Nacional de Mineração.
A corrida atrás do Ouro vermelho
Para os povos indígenas, não existe separação entre seres humanos e natureza. É tudo uma coisa só, um não podendo existir sem o outro. É o que ensina outro grande pensador indígena, Davi Kopenawa Yanomami, ao afirmar que os brancos não percebem “a terra como um ser que tem coração e respira”. Transformando tudo e todos em mercadoria, erguendo cercas e precificando aquilo que deveria ser a casa comum, o capitalismo continua perseguindo o lucro fácil e instantâneo, mesmo que isso seja o atalho mais curto para a destruição global. O interessante é perceber que na primeira linha de defesa da continuidade da existência humana, com aquelas ideias que podem adiar o fim do mundo, como poeticamente nos lembra Ailton Krenak, estão exatamente aqueles povos que para muitos ainda são considerados primitivos ou atrasados.
Afinal, nunca foram tão atuais as palavras do jesuíta Antônio Vieira, em 1656, quando disse que os colonos estavam mesmo era atrás do “ouro vermelho”, e que a captura e exploração dos indígenas era a verdadeira “mina daquela província”, referindo-se ao Grão Pará de então.
O momento é de reflexão, mas também de ação.
A hora é de resistir, custe o que custar