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Coluna Ingo Müller: O cri-cri dos grilos e o preço das bananas

Imagine, amigo leitor, que o nosso estado fosse uma potência na saúde. Um local com uma rede de atendimento tão ampla que chegaria a ser referência mundial no assunto, ao ponto de gente como Leonardo DiCaprio tuitar como são vastos os hospitais daqui. Na verdade, seriam tantas unidades que o governo sequer teria como fazer uso de todas, de modo que algumas ficarem fechadas, sem uso, e o executivo estadual mal saberia por onde andam as escrituras e chaves desses locais.

Só que, lógico, prédio fechado e sem função chama atenção. Então vamos supor que um desses hospitais abandonados fictícios fosse invadido por uma quadrilha que, após lhe arrombar o portão, começa a rapinar o que tem dentro. Eles vendem a mobília, os aparelhos, os remédios e até dão um rolê de ambulância com a sirene ligada. Apesar da atividade ser evidentemente ilícita, o governo não consegue impedir esse crime e o modus operandi dos bandidos se torna rotineiro em vários dos hospitais fechados do estado – uma verdadeira máfia da invasão hospitalar.

A imprensa denuncia o caso, e o governo responde que na verdade a maior parte dos hospitais invadidos são federais – o que não muda o fato de que algumas de suas propriedades estejam sendo vilipendiadas nesse nosso cenário de faz de conta.

Enquanto as duas esferas do executivo se apontam dedos, os bandidos vão muito bem, obrigado. Até que em 2021 o governo decide tomar uma atitude – só que em vez de expulsar os invasores, o estado propõe que eles possam comprar os hospitais que invadiram e saquearam, tornando-se proprietários legítimos desses estabelecimentos. Assim, em vez de ir pra cadeia, cada um poderia gerir os hospitais – só sendo punido se, após a compra, eles voltassem a vandalizar esses espaços.

Os olhos dos bandidos brilham com a possibilidade de, após tantos crimes, se tornarem homens de negócios legítimos. Para adoçar ainda mais o trato, o governo faz um mega desconto: embora os hospitais valham milhões (apesar do seu estado de abandono anterior), o governo estaria disposto a vendê-los aos posseiros por uma pequena fração do valor de mercado – precisamente 1,2% do que custaria para construir e aparelhar um hospital para a iniciativa privada.

Nessa hora um dono de hospital particular chega com o governo e fala “ei, porque esses bandidos estão pagando quase cem vezes menos que eu, que tenho um negócio legítimo?”. Com o mesmo espanto, a sociedade civil alerta: “Ei, esse patrimônio é NOSSO, deveria servir pra gente! Ao vender esses hospitais com esse desconto generoso a gente perde algo valioso e ainda deixa de arrecadar bilhões, caso ele tivesse sido vendido pelo preço de mercado!”.

Diante desses questionamentos o governo explica, por meio de nota, que o intuito deste desconto é evitar crimes futuros. Para toda sociedade fica, após esse recado, a mensagem que a invasão e saque de hospitais abandonados foi um negócio muito lucrativo, mais lucrativo do que o dos empresários que construíram hospitais do zero, de acordo com a lei, e mais benéfico para um pequeno grupo que pegou um bem da sociedade e pode chamar de seu. Ou seja, para evitar o crime do futuro, o governo fez o crime do passado compensar.

Agora pare de imaginar os hospitais.

Pense que, em vez de prédios de concreto, estamos falando de terras e florestas, que são a maior riqueza do estado. Seria um absurdo vender entregar essa riqueza na mão de bandidos, né?

Pois foi precisamente isso que o governo do Pará fez com estes bens: graças ao decreto estadual 1.684, de junho de 2021, o governador do Pará permite que posseiros e grileiros regularizem as terras que invadiram, e por um preço mais em conta que um combo de fast food: apenas 44 reais por uma área do tamanho de um campo de futebol. O valor é equivalente a 1,2% do preço de mercado, já que pelos meios tradicionais e legais você teria que desembolsar, em média, R$ 3.684 por hectare de terra comprado na Amazônia.

Foto: Ibama

Esse acerto imoral foi denunciado pela ONG Imazon, que calcula uma perda de R$ 6,2 bilhões em arrecadação para o estado pela privatização dessas terras a preço de banana, e um prejuízo muito maior – incalculável, na verdade – pela perda de um bem que deveria ser coletivo indo para as mãos de pessoas que desde o primeiro momento já demonstram não terem respeito pela biodiversidade.

A justificativa do governo para esta medida controversa é que, com a terra tendo posse definitiva, ele poderá responsabilizar seus donos por crimes ambientais. Mas, porque esperar tanto? O desmatamento na Amazônia é monitorado por satélites – temos o Deter, do Inpe, e tem o próprio Imazon. Desmatar custa caro, exige investimento, logística e estrutura, portanto invasão de terra algo que se conclua do dia pra noite, que não deixe rastros… então o que impede o governo de receber alertas e agir contra os criminosos enquanto eles ainda são criminosos? Por que esperar eles terem se beneficiado da ilegalidade para agir em caso de novas transgressões?

Outra parte do argumento a favor do decreto seria permitir que comunidades tradicionais, que ocupam desde muito tempo terras do estado, recebam a titulação definitiva. Disto eu sou totalmente a favor – inclusive, acho que nesse caso nem precisaria cobrar. O estado poderia fazer uma simples concessão, botando no papel o que já ocorre de fato para dar segurança jurídica aos povos tradicionais.

O que a gente não pode é colocar no mesmo balaio quilombolas e grileiros, ribeirinhos e garimpeiros… ou vocês acham que criminosos ambientais que se tornarem proprietários legais de terra vão magicamente mudar suas práticas e se tornarem produtores sustentáveis, do dia pra noite? Nada garante que a posse de terra significará cuidado com a natureza, e esse tipo de ingenuidade não pode prosperar na esfera estadual. É preciso diferenciar quem vive com floresta e quem só se interessa em lucrar com ela.