O sistema de transporte público urbano está em crise. Os problemas existem, as reclamações também. É comum escutar dos usuários de ônibus que o serviço de transporte público deixa a desejar em diversos fatores. Ônibus sucateados, paradas que são “queimadas”, calor excessivo dentro dos veículos, estão entre as maiores reclamações do público que utiliza esse meio de transporte. E essa não é uma exclusividade da nossa capital, Belém do Pará, mas sim uma realidade de centenas de cidades do Brasil.
Entretanto, para entender o cenário atual, precisamos voltar um pouco no tempo.
Os fluxos migratórios tornaram o processo de urbanização das cidades cada vez mais frequente. Com considerável rapidez, a estrutura das cidades passou a não mais atender a todas as demandas da população e se fez necessário uma expansão territorial. Todavia, essa expansão trouxe outra questão: como atender a população que está mais distante do centro das cidades?
Nesse ponto, ainda no século 17, surgiu a primeira figura que mudaria o destino da mobilidade urbana: Blaise Pascal. O inventor, matemático e físico que também inventou a primeira máquina de calcular da história, foi o responsável por criar o primeiro transporte coletivo.
Na França do Rei Luís 14, Pascal percebeu que a população francesa não tinha meios para se deslocar de um lugar para o outro. Logo, ele desenvolveu um sistema de transporte urbano de carruagens com itinerários fixos, tarifa e horários regulares. Parece familiar?
No início do século 19, ainda na França, o empresário Stanislas Baudry ia mal nos negócios e estava vendo seu estabelecimento, uma casa de banho em Nantes, ficar sem clientes por ser muito distante da capital. Foi então que em 1826 ele inaugurou um serviço de transporte que pudesse levar esses clientes até o seu negócio. O ponto de partida das viagens ficava localizado em frente a uma loja chamada Omnes Omnibus, do latim “tudo para todos”. Foi então que surgiu a palavra “ônibus”.
De Paris, o serviço passou a se disseminar pela Europa. No Brasil, o transporte urbano chegou na primeira década do século 20. Os primeiros registros de transportes coletivos no país são por meio de tração animal. Bem antes dos motores elétricos, cavalos e mulas eram os responsáveis por fazer esse serviço.
Entretanto, as dificuldades no nosso território são muito mais desafiadoras. Com dimensões continentais e com cidades muito maiores que países inteiros da Europa, o rodoviarismo no Brasil teve início em 1920, no governo do ex-presidente Washington Luís.
Enquanto governador de São Paulo, Luís declarou: “Governar é povoar; mas, não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas!”. Uma vez presidente, ele inaugurou, em 1928, a rodovia Rio-Petrópolis – a primeira rodovia asfaltada do Brasil – e a Rodovia Rio-São Paulo. Foi no governo dele também que foi criada a Polícia Rodoviária Federal.
Contudo, foi no governo do Presidente Juscelino Kubitschek que o rodoviarismo foi implementado de maneira mais substancial. Com o intuito de integrar o território brasileiro, JK planejou Brasília no coração do país. A partir da nova capital, novas rodovias foram criadas (as rodovias Belém-Brasília, Brasília-Rio Branco e Cuiabá-Porto Velho) a fim de ligar o centro do Brasil com as regiões Norte e Centro-Oeste.
Na década de 70, a criação do Plano Integração Nacional (PIN) veio para aumentar a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia através da construção de grandes estradas como a Transamazônica, Perimetral Norte, Cuiabá – Santarém.
Entretanto, segundo especialistas, a opção pelo rodoviarismo se provou um erro. De acordo com a Engenheira Civil com mestrado em Transportes, Patrícia Bittencourt, essa foi uma escolha muito nociva para o país.
“A opção pelo transporte rodoviário foi muito nociva para o país.”
Patrícia Bittencourt, Engenheira Civil.
TRANSPORTE PÚBLICO URBANO: UM DIREITO SOCIAL
De 2000 até hoje o número de habitantes no Brasil passou de 169.544.443 para 213,3 milhões brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Uma vez que o censo não foi realizado em 2021, os dados atuais são uma estimativa do IBGE.
Com o número crescente de habitantes, o transporte público rodoviário passou a ser o meio de transporte coletivo mais comum nas grandes cidades. O artigo 6º da Constituição Federal contava com 11 direitos sociais: educação; saúde; alimentação; trabalho; moradia; lazer; segurança; previdência social; proteção à maternidade; proteção à infância; e assistência aos desamparados. Até que, em 2015, o Senado aprovou a PEC 74/2013, de autoria da então Deputada Federal , Luiza Erundina (PSB-SP), que previa a inclusão do transporte no grupo de direitos sociais estabelecidos pela Constituição Federal.
Isso mostra como o transporte público urbano se tornou imprescindível para a dignidade humana. É através dele que podemos ir para o trabalho, para a escola, faculdade, ou qualquer outro compromisso social. Aí chegamos num ponto onde a conta não fecha.
O horário de pico e o “estrangulamento” do sistema
Um dos motivos de muitas reclamações por parte dos usuários do transporte coletivo urbano de Belém e Região Metropolitana gira em torno do grande número de pessoas nos ônibus em horários específicos do dia. É o que conhecemos como horário de “rush”. “Rush” em inglês quer dizer “pressa” e é a melhor palavra que define o estado das pessoas nas horas de entrada e saída do trabalho.
Pela manhã, no intervalo de tempo em que os usuários precisam ir para o trabalho, escolas, faculdades ou outros compromissos que acabam por ser no mesmo momento, o fluxo maior de pessoas faz com que o sistema fique sobrecarregado. No fim do dia, quando essas pessoas estão ansiosas para o retorno ao lar, a sobrecarga acontece novamente. Então a hora do “rush” é o horário de pico.
Entre um horário de pico e outro, nós temos os ônibus praticamente vazios pela cidade. Esse movimento é conhecido como “entre pico”, e costuma acontecer quando a maioria das pessoas está dentro de estabelecimentos como escolas, trabalhos, hospitais, etc. Como estamos dentro de locais fechados, é comum que não vejamos os ônibus circulando, em alguns casos, só com motorista e cobrador dentro.
Por esse motivo, somado ao desgaste e estresse natural do horário de pico, o usuário se sente prejudicado e mal atendido por um serviço que ele paga para utilizar.
Infelizmente, rush é rush na maioria das capitais do Brasil porque a folha de ponto do trabalhador não espera. Em Fortaleza-CE, o cenário também é preocupante. A cidade, que além dos ônibus conta ainda com metrô e VLT (Veículo Leve Sobre Trilhos), apresenta problemas quando o quesito é o horário de pico. Apesar de contar com uma frota relativamente nova, ter mais de 120 km de faixas exclusivas e uma tarifa que não passa por reajustes desde janeiro de 2019, a superlotação em horários de pico vem afastando os usuários. Segundo dados da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), até setembro de 2021 a demanda na capital cearense caiu em mais de 35% no período da pandemia, enquanto a oferta dos serviços, ou seja, do número de ônibus circulando nas ruas, caiu pouco mais de 15%.
Segundo a estudante Gabrielle Gomes, 21, a situação chega perto do insustentável. “É lotado e muito quente. Eles não aumentam a quantidade de ônibus e isso causa aumento da lotação. Ainda tem a questão do horário: se perdemos um, sabe-se lá quando vai passar outro”, afirmou.
O pico é um grande entrave para a solução do transporte público no Brasil hoje. Em alguns países, como a Grécia, os horários de entrada no trabalho já são escalonados e distribuídos em faixas de horário. A medida, que busca aumentar o espaço de tempo da entrada dos trabalhadores em seus serviços, foi tomada durante a pandemia e deve ser mantida no país. Aqui no Brasil, São Paulo começou a testar isso em março deste ano, para tentar aplacar os efeitos da pandemia.
Durante a fase emergencial, os trabalhadores da indústria passaram a entrar no trabalho das 5h às 7h, enquanto os trabalhadores de serviços ficaram com o horário das 7h às 9h e trabalhadores do comércio, das 9h às 11h. Esse diagnóstico que levou ao escalonamento vem, justamente, da excessiva quantidade de pessoas nos horários de pico, o que torna o transporte público caótico. Todavia, a iniciativa durou poucos dias e a rotina do trabalhador voltou ao estágio inicial.
O rush é um dos motivos que leva as pessoas a investir na compra do seu próprio veículo. Mas isso, em vez de resolver o problema, cria uma dificuldade ainda maior. As soluções são mais complexas, e vamos conversar sobre todas elas no decorrer da nossa série de reportagens.