Estava almoçando na casa da mamãe, às vésperas das eleições. Minha mãe preparava a sua cola para a votação, quando veio a pauta “deputada estadual”. Ela quem foi direto na figura. “Gostei daquela moça que estava na entrevista do BT, quero votar nela”, disse.
A “moça” é Lívia Duarte. Eu já conheço a Lívia há algum tempo. No entanto, não precisei sugerir o nome dela na conversa. Foi minha mãe que puxou. Minha mãe é professora, mulher batalhadora, que fez voo solo na criação das três filhas. Ela se identificou espontaneamente com as falas públicas de Lívia.
Segui ouvindo muito esse nome durante todo o fim de semana. Não deu outra. Com 28.817 votos, Lívia foi eleita para ocupar uma cadeira na Assembléia Lesgislativa do Pará, a única mulher negra socialista, entre 35 homens e cinco mulheres brancas, sendo essas de partidos de centro ou direita. Lívia disputou com a força de jovens herdeiros políticos como Luth Rebelo (PP) e Gustavo Sefer (PSD).
Antes disso, Lívia já havia sido eleita vereadora em 2020, com uma votação expressiva, para uma primeira viagem na disputa de um cargo eletivo, com 5.599 votos. Mas de onde vieram esses números? E por que tão rapidamente Lívia decola na política paraense?
Sobre as sucessivas vitórias de Lívia, é mais óbvio para o sistema atribuir justificativas misóginas quando uma mulher brilha. Pro organismo político então é irritante ter que lidar com mais uma mulher que vai enfiar o dedo na zona de conforto de toda ‘macharada’ acostumada com seu “mise en scène de parlamentar” e privilégios.
Bem, mas de onde Lívia veio?
Lívia veio de um espaço vital para o funcionamento de uma capital como Belém, com altos índices de desigualdade e má distribuição de renda como todos os centros urbanos. Lívia veio da periferia de Belém. A periferia é o lugar que reúne toda a força de trabalho que faz uma metrópole funcionar. Pois é, Lívia veio de lá.
Começou sua experiência com a militância ainda na adolescência, combatendo o racismo e atuando pelas mulheres. Dos 13 aos 22 anos fez a mesma trajetória de muitos políticos, dentro dos tão entusiásticos movimentos estudantis.
Antes de ser oficialmente psolista, Lívia já fazia parte das articulações dentro do Partido dos Trabalhadores (PT), até que com 18 anos se filiou oficialmente ao Psol. Lívia então fundou o Setorial de Mulheres do PSOL do Pará, deixando sua assinatura, de força feminina que gera suas ideias no ventre e dá a luz aos seus próprios caminhos.
Lívia foi assessora parlamentar de Edmilson Rodrigues por mais de dez anos e provavelmente aprendeu o grosso do fazer política no dia a dia com essa experiência (eu que estou sugerindo, nunca perguntei a ela). Mas antes de se eleger vereadora, Lívia sedimentou sua força na esquerda paraense, tornando-se em 2019, a primeira presidenta negra municipal do Psol.
Eleita vereadora do município, Lívia apresentou dezenas de projetos ligados à defesa das mulheres, com destaque para a inédita proposta da criação da primeira creche noturna de Belém. Além disso, um dos seus marcos como vereadora foi criar e conseguir aprovar o Estatuto da Igualdade Racial Municipal.
Lívia será empossada deputada estadual na Alepa, para alegria de muitas mulheres como eu, ou como minha mãe, que se sentem representadas pelas falas e ações de Lívia. Mas para além das nossas escolhas individuais, Lívia ocupa um lugar como garantia de políticas que versem sobre a dura vida das mulheres que estão na periferia de cidades da Amazônia, que resistem à exploração do homem (estou falando das mulheres e das cidades).
Lívia é o nome feminino da esquerda paraense, e o nome que desponta na política do estado, mas não é um nome novo. Lívia tem história. A vitória de Lívia é uma lufada de confiança no meio de nomes conservadores e ecocidas hiper-promovidos politicamente no sul e sudeste como Damares, Ricardo Salles e Carla Zambelli.
Infelizmente, a antropofagia da esquerda foi incapaz de se auto-superar e se articular estrategicamente para garantir a vitória de outros dois nomes femininos importantes, Marinor e Vivi Reis. A disputa voto a voto entre as duas pela vaga no legislativo federal garantiu a derrota de ambas.
Lívia entra agora num ambiente inóspito, eu diria, dominado por homens brancos e héteros, como a Alepa é. Sem dúvida, ela saberá lidar com isso já que assim o aprendeu a fazer a vida toda. Mas Lívia sabe de si, deixa claro quais são os seus “nãos” e os seus “sins” e ocupa o seu espaço sem timidez. Lívia ficará na Alepa o mandato todo, obviamente, e não será uma surpresa ver a musculatura política de Lívia em 2026.